[Entre dentes] #01 – Os nomes dos mortos
Um conto esquisitinho inaugurando uma seção esquisitinha.
Se você perdeu as últimas edições da Café com caos, explico: agora temos uma nova seção chamada Entre dentes. Aqui vou enviar pequenos contos de horror, no máximo 1 por mês. Alguns desses contos são parte do livro que estou escrevendo, outros são exercícios de escrita. Se você quer continuar assinando a Café com caos, mas não quer assinar essa seção em específico, é possível desassinar ela individualmente. Se ficar por aqui, espero que tenha uma boa leitura! :)
Os nomes dos mortos
Aumento o volume da televisão pra não ouvir a velha chorando. Todo mundo sabe que até umas nove ela grita. Das nove às onze, ela chora. A madrugada é pros resmungos. Às vezes, posso jurar que ela está falando com outra pessoa. Umas conversas longas, uma ladainha. Mas ninguém responde. A cachorra, no começo, chorava junto. Andava pela casa, ganindo baixinho, acompanhando a falação. Briguei com ela tantas vezes que aprendeu. Agora ignora, como todos nós. Quando muito, olha pela janela, presta atenção, parece até que entende o que a doida diz. Mas já não tenta responder.
Na televisão, um repórter russo fala sobre a guerra. Outra ladainha. Eu não falo russo, mas gosto de deixar jornais estrangeiros passando enquanto preparo a comida. Vez ou outra me impressiono com o som de alguma palavra esquisita, tento imitar. A garganta não gosta de ser forçada a um movimento que não conhece, me enche de pigarros. Hoje a doida está mais falante que o normal. Acendo um cigarro na janela e ouço parte dos murmúrios: o que eu preciso fazer… não entendo o que houve… Luciano não responde… As pausas entre as frases me fazem pensar que ela talvez acredite mesmo estar numa conversa, não sei com quem. Parece ouvir, prestar atenção, responder ao que foi dito. Na semana passada, desembestou a gritar você sabe o que é perder um filho, piranha?, eu cheguei a me esticar pra procurar alguém com quem ela pudesse estar falando. Ninguém na rua. Só a doida com a cabeça pra fora da janela, discutindo com o vento, gritando sem parar você sabe o que é perder um filho, piranha? você sabe o que é perder um filho, piranha? você sabe o que é perder um filho, piranha?.
Lá pras duas da manhã, o sargento aposentado que mora no 7º andar se irritou e gritou um sonoro se controla, caralho, que ainda passou um bom tempo vibrando no ar. A mulher aquietou. Depois voltou a repetir a mesma frase, o mesmo looping, dessa vez em voz baixa, quase inaudível. Eu ouço tudo porque moro no 5º andar, e ela no 4º. Ainda assim, nunca nos esbarramos. Desde que mudei pra cá, só o que conheço é a sua voz rouca. E o topo de sua cabeça grisalha, que é o que vejo quando ela está com parte do corpo apoiada na janela.
Uma vez, escutei ela resmungando em voz baixa: se eu cair daqui, eu morro, Luciano… Larguei o que estava fazendo e fui até a janela. Ei, gritei. Não sabia qual era o propósito de gritar Ei, nem o que diria a seguir. Mas queria que ela soubesse que eu estava ali, vendo. A mulher tinha o tronco todo debruçado sobre o parapeito. Quando ergueu o rosto, vi que seus olhos eram completamente esbranquiçados de catarata. Pensei que ela diria alguma coisa, mas não disse. Me deu o dedo do meio e saiu da janela.
Já o sargento do 7º andar eu encontro com frequência. Na época da mudança, ele me viu com umas caixas no elevador e se ofereceu pra ajudar. Um mês depois, recebi um bilhete por baixo da porta: “apartamento 706, preciso que veja uma coisa”. Ele deve ter uns sessenta anos, cheira a tabaco e mofo. Seu apartamento é do mesmo tamanho que o meu, mas parece abarrotado de coisas. Há medalhas, muitas sacolas e pilhas de papéis, um grande crucifixo dourado na parede próxima à porta. Em uma das estantes, vi um pote cheio de unhas. O sargento disse que eram unhas de mulheres que conheceu ao longo da vida, ele gostava de colecionar pra lembrar delas. Perguntou se eu me importava de dar a ele um pedaço da minha. Não quis discutir com ele trancada naquele buraco de apartamento, então deixei que pegasse uma tesoura e cortasse uma tira do polegar. Ele segurou o pedaço com as duas mãos, como se fosse um tesouro, e o colocou dentro do jarro.
— O que você queria que eu visse? — perguntei.
— Nada, só não queria que ficasse sozinha.
— Não fico sozinha, tenho a cachorra.
Ele abriu caminho entre as tralhas pra ir até a janela.
— Hoje ela tá silenciosa — comentou. — A velha.
Verifiquei o celular: 22h48. Não se ouvia nenhum resquício de voz.
— Quem é Luciano? — perguntei.
— O filho. Se meteu em alguma merda e apareceu morto. Aliás, só a cabeça apareceu, no Alto da Boa Vista. O corpo não acharam mais.
— Ela conversa muito com ele.
— Ela gosta de falar com os mortos.
— E quem não gosta?
O sargento foi até uma das pilhas de papel e veio me mostrar os desenhos que os netos fizeram. São três, moram na Califórnia com a mãe e o americano com quem ela casou.
— Agora já são adolescentes, mas guardei os desenhos que eles faziam antes de ir.
Sorri, como se visse algum sentido naqueles rabiscos desengonçados feitos por crianças que já não existiam mais.
Assim que voltei pra casa, entrei num banho demorado. Precisava tirar o mofo do corpo. No espelho, encarei por um tempo meu rosto de 48 anos, sem filhos ou netos a perder. O sono levou mais de duas horas pra vir. Estranhei dormir sem o choro dela.
Aquela foi a única semana que a velha passou em silêncio. Pensei que pudesse estar morta e, no domingo de manhã, fui até o seu apartamento, mas não consegui tocar a campainha. Ia dizer o quê? Com o ouvido encostado na porta, escutei alguns passos agitados, uma tosse. Foi o suficiente.
Naquela semana, também comecei a ter sonhos em que ela entrava na minha casa, dizia que precisava dos meus olhos, pois os dela não serviam mais. Em outros, ninava um pacote enrolado em várias mantas. Até que ela tirava os panos, e nós duas nos assustávamos ao ver que o que ela estava ninando era a cabeça de Luciano. Nessas horas, a velha começava a gritar cada vez mais alto e eu fazia de tudo pra que ela calasse a boca, mas nada adiantava, aquele grito ia aumentando e aumentando, como se estivesse engolindo os móveis, minhas roupas, meu rosto, minha própria voz.
Os sonhos eram frequentes no começo, depois foram sendo esquecidos. Nunca mais encarei os olhos brancos dela, dormindo ou acordada. Só o que vejo é o seu tronco debruçado sobre o parapeito, os cabelos ralos no topo da cabeça, as mãos enrugadas como ficavam as minhas depois de um dia inteiro na piscina. Quando ainda havia piscinas e a pele do meu corpo ainda era elástica, ia e voltava com facilidade. Agora tenho mãos secas, um rosto manchado, uma voz que falha.
Encaro o repórter russo com seu idioma indecifrável. Existe algo, ao mesmo tempo, calmante e angustiante em não entender o que está sendo dito, como se as palavras fossem espremidas até se tornarem cascas vazias. Apenas o som, mais nada. Escutá-lo me dá a sensação de que nada do que ele tem a dizer me pertence, sou uma visitante, alguém a passeio, alheia ao que acontece.
Quando o jornal termina, volto aos canais brasileiros. É quando dou de cara com o rosto do sargento estampando uma matéria. Está sendo indiciado por ter abusado de mais de quatorze mulheres.
A náusea dobra o meu corpo magro sobre o vaso sanitário. Faz tempo que nada dura dentro de mim. Comidas, líquidos, bebês. Na terceira vez, o médico deu uma risadinha: Parece que sua barriga não quer receber ninguém. Risos risos. A enfermeira com pena: Tem que fazer uma mentalização assim, oh, fica na frente do espelho, diz pro seu corpo: tudo bem, não vai doer, pode deixar acontecer. (você sabe o que é perder um filho, piranha?) Obrigada, vou fazer. Foi a última vez. Quinze anos atrás, o sangue cansado de descer pelas pernas, o útero esquálido, um corpo que diz: Aqui não tem espaço pra ninguém. Sou um território hostil.
Agora esse cheiro podre que vira e mexe invade o apartamento, já falei com o porteiro, ninguém sabe. É o suficiente pra me fazer vomitar o almoço e o jantar. Talvez contribua pro enjoo a imagem do sargento sendo levado pela polícia mais cedo, eu assistindo à cena pela janela da cozinha, um misto quente molenga esfriando na mão. Ele chegou a olhar pra cima, não sei se em direção a mim, à velha, ao próprio apartamento vazio.
Já tinha comido metade do pão quando decidi ir até o 7º andar. Encontrei a porta destrancada, o apartamento continuava tão claustrofóbico quanto antes. O pote com as unhas não estava mais lá. Talvez tenha virado evidência. Pensei no meu pedaço de unha indo junto, misturado a outras tantas unhas de outras tantas mulheres que talvez não tenham dado essas unhas por vontade própria. Como uma espécie de vingança, revirei as tralhas empilhadas até encontrar os desenhos dos netos que foram pra Califórnia, rasguei todos em pedacinhos minúsculos e joguei na pia do banheiro formando uma pequena montanha de destroços.
A cruz dourada deixei enfiada no vaso sanitário.
O primeiro feto morto que tiraram de mim eu pedi pra guardar. Era um negócio pequeno, torto, irreconhecível, como um amontoado de carne em que os contornos ainda não haviam sido definidos. Carne viscosa, sangue e muco. Vitor achou que eu estava ficando louca: Pra quê isso? Vai ficar andando com essa merda por aí? A mãe dele implorou que eu deixasse a alma do bebê descansar em paz. Sugeriu que nós o enterrássemos, disse que rituais são importantes nessas horas.
Meu ritual era passar horas segurando o vidro com a criatura distorcida que arrancaram de mim e ver animais devorando uns aos outros no Discovery Channel.
Nenhum dos bebês chegou a ter nome. Penso muito nisso. Principalmente quando escuto a velha chamando o nome de Luciano, ainda, repetidas vezes, e me pergunto se o nome dele ainda vive em alguma outra boca que não seja a dela. Quanto tempo leva pra tirar o nome de um morto da boca? Quanto tempo leva até a língua desabituar a pronunciar um nome que foi tantas vezes repetido? Quando minha mãe morreu, a primeira coisa que pensei foi “nunca mais vou pronunciar a palavra mãe”.
Mas a velha se recusa a abandonar o nome do filho morto.
A velha, essa criatura também caquética, com os olhos cobertos de um branco leitoso, tão inútil quanto os bebês que não vingaram. Alguns vizinhos tentam tirá-la do prédio, insistem que vá para um asilo, usam seus gritos noturnos de argumento pra enfatizar que ela não sabe mais viver sozinha. Quando dizem isso à velha, a resposta é enfática: Não estou sozinha. Tenho o Luciano.
Ao som de seus resmungos, decido procurar na bagunça da mudança o vidro com o feto tirado de mim. Mais do que isso: decido pegar o vidro, entrar no elevador, ir até o apartamento da velha, mostrar a ela que eu também carrego um morto. Que nós todos carregamos nossos mortos. Na boca, nos pés, nas costas, nos dentes trincados à noite. Nos gritos ou emudecimentos. Na forma como desviamos o olhar uns dos outros. Nem todos os mortos têm nome ou rosto, nem todos têm corpo — às vezes, basta uma cabeça, um princípio de carne sem contornos.
Quero dizer isso a ela. Mostrar a ela o bebê que nunca chegou a ser um bebê. Contar a ela sobre os outros bebês-não-bebês que me escaparam pelas pernas, reduzidos a coágulos, pus ou sangues espessos, escorrendo pelo ralo sujo do banheiro.
(Você sabe o que é perder um filho, piranha? Eu sei.)
A porta de seu apartamento está semiaberta. Entro sem anunciar minha chegada, como se de repente me sentisse íntima, como se, só agora, me percebesse mais semelhante à velha do que havia imaginado.
Assim que entro, me surpreende a ausência de móveis. Não há nada, exceto duas cadeiras em frente à janela. Sobre uma delas, há uma travessa redonda de metal, com detalhes rebuscados nas laterais, me lembra a travessa onde minha mãe costumava colocar o pudim de leite nas noites de Natal. Na travessa, repousa a cabeça de Luciano. Sentada na outra cadeira está a velha, virada pra ele, prestando atenção e assentindo, como se concordasse com o que escuta. Mal repara que entrei em sua casa, me olha de relance e retorna ao assunto. De repente, solta uma risada aguda, eu nunca a escutei rindo e levo um susto. Depois, leva as mãos ao rosto do filho: só você, Luciano.
Não percebo que estou segurando o vidro com tanta força até ele estourar no meu colo. O sangue dos cortes em minhas mãos se mistura ao líquido avermelhado que cerca o feto, e pela primeira vez encosto em sua pele escorregadia, viscosa, quase uma membrana translúcida. Mal se pode chamar de pele. Mal se pode chamar de filho.
Pergunto em voz alta, embora saiba que só eu escuto: Será muito tarde pra dar a ele um nome?
Maíra, que conto!!!!
Mal posso esperar pelo livro todo S2.
Uaaaaau! Que porrada!Maravilhoso conto!