#10 – O idioma dos buracos negros
Da manhã de sábado até a tarde de segunda, falei com, aproximadamente, 16 pessoas. Nem todas me ouviram dizer abertamente: "ei, alguma coisa está me puxando pro abismo e eu não consigo voltar, me lembra aqui rapidinho o que eu ainda estou fazendo nesse mundo, por favor?". Às vezes, os assuntos eram singelos. A chuva, a astrologia, os livros, uma lanchonete temática de Star Wars. Outros me ouviram costurar ladainhas neuróticas e se empenharam em me dar longos conselhos — talvez já sabendo que eu não estava ouvindo nada.
E eu não estava mesmo. Em certos momentos, falar com uma pessoa com depressão pode ser como ir até o jardim de casa e tentar dar tchau pra um astronauta em Marte. Não adianta sacudir os braços, estender uma faixa, gritar. A gente está longe, a gente não enxerga, nem ouve. A gente está falando o idioma dos buracos negros.
Mas, de alguma forma, navegando entre os meus buracos negros, por algum motivo, eu ainda procurava as pessoas pra conversas. Precisava que elas respondessem, que elas falassem, que elas puxassem assuntos, que elas continuassem sustentando essa tentativa de comunicação, que, por mais falha que fosse, me mantinha acordada por mais um tempo. Como uma daquelas cenas hollywoodianas em que uma pessoa sequestrada fala pelo telefone com alguém do FBI, e é mantendo essa ligação que eles conseguem ganhar tempo e rastrear o perigo.
Às vezes, não tem rastreio que funcione. A queda pode ser brusca, pode vir de onde menos se espera, pode aparecer no meio de uma semana feliz. Pode ser desencadeada por um engarrafamento em uma noite chuvosa, pela sensação de estar perdendo alguma coisa muito preciosa ou pela sensação de estar de fora, mais uma vez, e sempre, constantemente de fora, ouvindo a festa que — já dizia a Marina Lima — acontece sempre em outro apartamento. Não tem como prever a queda, nem solucionar a queda. Não tem como enfiar nesse vazio qualquer coisa que efetivamente o preencha, embora a gente tente, constantemente, jogando ali um litro de tequila, uma lata de leite condensado, umas horas de sexo ou um dia inteiro de Netflix. Embora a gente tente, inclusive, enfiar no vazio as palavras dos outros, aguardando ansiosamente que eles digam, enfim, a palavra mágica que — ufa, que alívio — vai amenizar tudo.
A frustração de conversar com 16 pessoas sem ouvir a palavra mágica talvez só possa ser resolvida com a própria constatação de que: a palavra mágica não existe. Ironicamente, quando o meu primeiro livro saiu, algumas pessoas me procuraram pra dizer que ele, de alguma forma, salvou elas. Misto de choque e ternura. É bom acreditar (mesmo desacreditando) que a literatura ainda é capaz de salvar alguém. É bom manter isso guardado no meu peito pra quando a tequila e o leite condensado e o sexo e a Netflix não forem suficientes. Às vezes, nada é. Nem mesmo a escrita, nem mesmo a poesia. Por baixo de tudo, sobra ali o buraco impreenchível dos dias com o qual é preciso aprender a lidar, sem olhar pra outro lado, sem enfiar nele tudo que for possível enfiar, sem esperar que a palavra dos outros preencha as nossas brechas.
Mas olhar pro próprio abismo pode ser menos difícil se a gente tem alguém pra divagar sobre a chuva, a astrologia, mandar vídeos de cachorros fofos. Talvez esteja aí, enfim, a única forma possível de apaziguar a queda. Mantendo a ligação que, mesmo incapaz de rastrear o perigo, consegue ganhar um tanto de tempo, consegue distrair o foco até que o corpo recupere o fôlego. Ou, como bem disse uma das minhas 16 pessoas: às vezes, o que a gente precisa não é de alguém que mergulhe no abismo com a gente, mas, sim, de alguém que vai estar num barquinho ali por perto, esperando com uma toalha macia e um chazinho quente pra quando a gente conseguir voltar.
Esse texto foi escrito há alguns anos (2016? por aí). Recentemente, encontrei ele perdido no meu computador e acabei publicando na minha coluna mensal lá na revista cassandra (inclusive, você já conhece a cassandra? Passa lá pra conhecer).
Li, assisti, encontrei
✷ Passei os últimos dias mergulhada na quarta temporada de Stranger things e tô deixando meus comentários aleatórios reunidos aqui nesse tweet.
✷ Terminei a leitura de A vida real, da Adeline Dieudonné, e parece que levei 4 socos no estômago, 3 chutes no pulmão e 2 tapas na cara. Escrevi uma pequena resenha nesse post.
✷ Como absolutamente todas as pessoas que estão vendo Stranger things, não consigo parar de ouvir (e cantar) Running up that hill. Eu já era viciada na versão do Placebo, mas confesso que nunca tinha dado muita atenção à original. Agora não consigo parar de escutar. Enfim, Kate Bush, né?
Outras notícias
✷ Comentei na última newsletter que sairia a primeira edição da Noturna, e não é que ela saiu mesmo? Foi um processo trabalhoso, longo, insano, mas tá sendo muito bom receber o feedback das pessoas. Nessa primeira edição, tem 4 contos de 4 escritoras maravilhosas (Luísa Montenegro, GabiOZ, Tatiana Faraújo e Morgana Feijão) e também um editorial em que eu falo sobre o horror como um espaço de possíveis transgressões. A revista tá disponível em todos os formatos digitais (e tem até página no Skoob e no Goodreads, chique demais).
✷ Ainda sobre a Noturna, nós também já abrimos a seleção pra segunda edição da revista! O tema dessa vez vai ser: manchas. Tem todos os detalhes lá no edital.
Até a próxima!
Maíra