#12 – A perna (em breve) amputada
Sexta-feira, 01h27 da manhã. Me pego escrevendo em uma conversa no WhatsApp: “quem eu sou quando eu não tô sendo essa pessoa que eu já me acostumei a ser?”. A conversa começou a partir de alguma música da Florence ou talvez do vídeo de uma psicanalista falando sobre neurose de repetição, depois foi parar aí. Comentei com ele que às vezes eu insisto em certos erros ou em certas limitações porque me acostumei com a ideia de estar nesse papel. Muitas vezes é um papel doloroso, mas é antigo, já me cai como uma luva sem eu sequer precisar fazer esforço pra entrar. Há muitos fatores capazes de fazer a gente grudar em um papel assim. Talvez tenha algum ganho ali, apesar dos pesares. Talvez seja o comodismo. O fato é que, depois de algum tempo, a gente já quase não percebe que está, mais uma vez, mastigando as mesmas dores feito um chiclete velho, ruminando as mesmas reclamações, se colocando no mesmo lugar (e depois amaldiçoando a vida como se ela fosse culpada por ter feito a gente ir parar ali).
Em outra conversa com esse mesmo amigo, digo: “às vezes uma relação parece boa, mas ela é só confortável”. O comodismo fala alto. Não só nas relações, mas nos posicionamentos, nas posturas, nos hábitos. Better the devil that you know. Antes uma dor que eu já conheço, já sei como funciona, onde bate, com que força, do que uma dor inteiramente nova, pra qual eu nem tive a chance de me preparar. E é assim que a gente cai nessa de insistir em ocupar um lugar que já não faz nenhum sentido.
Formulo a pergunta pro meu amigo, mas principalmente pra mim mesma: “quem eu sou quando eu não tô sendo essa pessoa que eu me acostumei a ser?” Não sei a resposta, mas imediatamente lembro da terceira perna da Clarice. É difícil desapegar daquilo que é familiar, que nos torna uma coisa encontrável por nós mesmos, ainda que seja uma terceira perna — símbolo da estabilidade, mas também da impossibilidade de movimento.
Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com as duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.
(Clarice Lispector, em A paixão segundo G.H.)
Descobrir quem eu sou sem a terceira perna é também ser lançada a um terreno desconhecido e assombroso, encarando versões minhas que eu talvez não esteja preparada pra encarar. Exige desprendimento, coragem — coisa que nem sempre a gente tem pra dar. Em contrapartida, me pergunto se a alternativa compensa. Até quando ocupar o papel que não é meu, mas que eu ocupo por ter me habituado a ele? Até quando esse comprometimento com uma versão que já não faz mais sentido, mas a gente mantém por preguiça do trabalho que é levantar e começar a busca por uma versão nova? Até quando a estabilidade e a estagnação da terceira perna?
Ou, partindo pra uma pergunta ainda mais difícil: como diferenciar quem a gente é de fato daquilo que a gente aprendeu a ser e continuou sendo só porque era confortável? Como diferenciar o que queremos do que aprendemos a querer? Não sei, não tenho resposta para nenhuma dessas perguntas. Em algum momento, eu e meu amigo abandonamos os dilemas existenciais e começamos a planejar o que vamos fazer quando eu for à Fortaleza. Deixamos a conversa pra quando estivermos em um bar, bebendo e divagando sobre a vida em uma madrugada quente de janeiro.
Mas ele vai dormir e eu continuo acordada, um incômodo pinicante nessa madrugada fria de junho. Lembro da minha insistência em sustentar certas ideias antigas sobre mim mesma, lembro das brigas frequentes com o meu pai, porque ele tinha o hábito de dizer “eu sou assim” e dar o assunto por encerrado, como se uma pessoa fosse um bloco de cimento e não um rio. Lembro que eu mesma, nos últimos meses, tenho me sentido muito cimento e pouco rio. Já são quase 3h da manhã quando, enfim, decido ir dormir. Coloco as três pernas na cama e me despeço da terceira. Sei que um processo de amputação acabou de começar.
Enquanto escrevia essa newsletter, lembrei desse tweet que passou pela minha timeline semanas atrás e eu brinquei de responder. Fica a pergunta pra vocês: sem nome, profissão, cargo, estado civil, status social, quem é você?
Li, assisti, encontrei
✷ Anda no repeat essa música da Florence, que tem a frase que mais me doeu nos últimos tempos: “I don’t love you, I just love the bomb. Buildings falling is the only thing that turns me on.”
✷ Saiu hoje a entrevista que eu fiz com a autora boliviana Giovanna Rivero lá na Noturna. Se você não leu, vale a pena pegar o livro de contos Terra fresca da sua tumba, publicado pelas editoras Jandaíra e Incompleta. A entrevista, como um todo, foi incrível, mas esse trecho me marcou bastante:
A escrita, como ato físico e psíquico, me parece a fase mais pesada do processo de criação. Antes de chegar a esse passo, eu pesquiso muito, e isso, ainda que também possa ser esgotante, permite que eu me sinta acompanhada por informações de todo tipo (científica, astrológica, biológica, médica). Por outro lado, eu penso na escrita como um salto de uma nave espacial em direção ao ventre infinito do céu negro. Nunca sei o que me espera na sucessão de palavras, qual tesouro ou qual traição. Agora mesmo estou escrevendo um romance, e o trabalho de tecê-lo me apresenta novas batalhas a cada dia. Espero sobreviver.
✷ Essa matéria ótima sobre escritoras latino-americanas que estão escrevendo horror.
✷ Maravilhosa também essa entrevista com a autora argentina Samanta Schweblin.
✷ E, por falar em horror, duas notícias importantes: 1) ainda está rolando a segunda seleção da Noturna! Até o dia 30/06 (quinta-feira), estaremos recebendo contos de horror escritos por autoras mulheres, com 3.000 a 5.000 palavras. Para saber mais detalhes e enviar o seu conto, é só ler o edital. 2) saiu mais uma edição da Escambanáutica, então fica a dica pra quem está procurando uma leitura pra esse fim de domingo. (Vale a pena também ler a primeira edição da Noturna, caso você ainda não tenha lido!)
Até a próxima!
Maíra
Que texto incrível, queria ter escrito no meu diário. :)