#14 – O tempo da escrita
Esses dias, a Taís Bravo postou um texto no Instagram falando sobre o tempo da escrita.
"O tempo da escrita tem sido o tempo do cuscuz ficar pronto. (...) O tempo até a água ferver. Às vezes a escrita quer roubar o tempo e invade meu sono, me obriga a deitar com caderno ou celular na cabeceira. Desperta tentando inventar tempo. As mãos no teclado ensaiando uma forma de acompanhar a cabeça inquieta. Escrevendo às vezes só uma linha como quem insiste em expandir a vida a cada brecha."
Li esse post e fiquei pensando em como, na minha vida, o tempo da escrita também tem sido o das brechas. Escrevo entre o café da manhã e a entrada no trabalho. Entre o momento de bater o ponto e o momento de começar a pensar no jantar. Entre uma revisão e outra. Enquanto a máquina lava a roupa. Enquanto o arroz cozinha. Enquanto o cliente não manda o material que ficou de mandar. Escrever no entre, nas pequenas fissuras que se abrem ao longo do dia, tem sido a única forma de me manter perto da escrita.
Ao mesmo tempo, sinto que esse é um fio fácil de se perder. As brechas que se abrem são muito facilmente ocupadas por outras demandas. Enquanto o arroz cozinha, posso lembrar de pagar aquela conta. Enquanto a máquina lava roupa, me perco respondendo mensagens. Escrever nas fissuras também requer uma recusa a outras formas de ocupar o tempo (que são, inclusive, mais espaçosas, mais invasivas). Requer que eu reserve esse espaço, como se fosse uma mãe de muitos filhotes que, reconhecendo em um deles maior fragilidade, afasta os outros para que esse possa comer sem precisar competir. Diante de todas as demandas que cercam uma vida considerada produtiva em um mundo capitalista, a escrita é o meu filhote mais atrofiado. Magricela, sujinho, deslocado.
Uma das estratégias que tenho encontrado para garantir que esse filhote não seja atropelado pelos outros é estar em espaços de escritores. Desde que comecei a Noturna e passei a circular também nos grupos da Escambau, tem sido mais fácil não negligenciar a escrita. Com tantos exercícios e desafios, seleções para revistas, editais abertos, sprints diários, consigo — aos poucos — reivindicar o tempo da escrita entre as muitas demandas que se impõem. É um tempo frequentemente atravessado por outros tantos afazeres (assim como a escrita dessa newsletter que já foi interrompida 5 vezes até aqui), mas, ainda assim, é um tempo em que a escrita tem a chance de se alimentar, esticar as patas, exercitar os músculos.
Sempre comento que escrevi o meu primeiro livro no ônibus. Indo e voltando da UFRJ, enfrentando longos engarrafamentos na Linha Amarela. Era o momento que eu tinha pra ler. E, lendo, escrevia. Com as mãos enfiadas dentro da bolsa pra digitar os poemas no celular sem correr maiores riscos de ser assaltada, escrevi, pelo menos, 90% dos poemas que estão no meu primeiro livro. Era a brecha possível, na época. Gosto de pensar que em algum momento talvez eu não precise forçar fissuras para que a escrita consiga permanecer nos meus dias. Em um futuro utópico, gosto de imaginar que vou dar a esse filhote franzino todo o espaço da casa, dias inteiros para que ele possa circular, experimentar, se derramar sobre as horas.
Por enquanto, não. Ser uma mulher que escreve — entre demandas da CLT e demandas domésticas, com estímulos digitais frequentes e uma constante necessidade de rentabilizar até mesmo as nossas paixões para conseguir pagar as contas do mês — ainda exige certa capacidade de negociação, certa estratégia. E alguma dose de insistência.
Li, assisti, encontrei
✷ Texto (antigo) da Aline Valek sobre não caber nas fronteiras dos gêneros literários.
“Rap de verdade. Literatura de verdade. Tem sempre alguém reivindicando o posto de gatekeeper. (…) As fronteiras existem, em primeiro lugar, para eleger quem são os forasteiros.”
✷ Thread da Bárbara Morais sobre o espaço que a literatura nacional vem ocupando nas editoras (e a janela de oportunidade que temos aí).
✷ Curso maravilhoso que vai rolar na APPH: “Territórios do horror — Política e violência na nova ficção latino-americana”.
✷ E, mais uma vez, eu trazendo entrevistas de Samanta Schweblin pra essa newsletter. Essa foi pra Página Cinco.
“A literatura não pode vir a dizer “isso é assim, e isso não”. A literatura tem que estar aí para perguntar, para interpelar, para voltar a pensar o que já se dava como certo.”
✷ Falando em Samanta, terminei o maravilhoso Pássaros na boca. Ainda pretendo escrever sobre ele, mas já posso dizer que entrou pra lista dos favoritos. A forma como a Samanta brinca com o estranhamento e o desconforto do leitor — e faz isso em contos relativamente curtos, ainda por cima — é surreal.