#16 – Sobre fantasmas, desaparições e corpos insistentes
Desaparecer não é nenhum mistério
Faz algum tempo venho sentindo dores no dente. Sei que são do lado esquerdo, mas não sei em que dente exatamente. Dói quando mastigo pedaços duros de carne. Dói com líquidos gelados e quentes. Essa semana, fui à dentista. Não tem nada. Fiz a radiografia e: nada, não tem nada ali. Também nos últimos dias, cismei que tinha entrado outro caco de vidro no meu pé (outro, porque na semana passada de fato entrou um). Dói quando apoio a lateral do pé no chão. Liguei a lanterna, peguei uma lupa, pedi pra olharem: nada. Não tem nada ali. Aparentemente, estou sofrendo de dores-fantasma.
Combina bem com o momento. Eu mesma ando meio fantasmática. Entro e saio das aulas on-line sem que ninguém perceba. Não falo, não apareço, não me pronuncio. Não vou a eventos. Às vezes, sou tomada pela vontade de desativar todas as redes e sumir no mundo. Respondo a poucas mensagens. Pegando emprestado o trecho de um poema da Elizabeth Bishop (e estragando a sonoridade original dele): a arte de desaparecer não é nenhum mistério. O que também tem muito a ver com a arte de perder citada no poema: “Tantas coisas contêm em si o acidente/ De perdê-las, que perder não é nada sério”. Desaparecer é, também, de certa forma, uma insistência na perda. Uma vocação para a perda. Desaparecer é perder consecutivamente.
Nas obras de algumas autoras latino-americanas que tenho estudado, o fantasma surge como um rastro após uma tentativa de apagamento. É uma figura emblemática: aquele que já não tem a materialidade de um corpo, mas é incapaz de desaparecer por completo. Uma figura que, assim como muitos monstros, vive no limiar. No limbo. Foi, mas não foi por inteiro. Retorna, mas não totalmente. Acontece que, em muitas obras dessas autoras, esse retorno, ou essa incapacidade de morrer de vez, tem a ver também com uma recusa ao desaparecimento. São existências que poderiam ser varridas para debaixo do tapete com facilidade, porque socialmente valem pouco ou quase nada. Existências marginalizadas, violentadas, invisibilizadas. Mas que, no momento derradeiro, se recusam a desaparecer por completo.
Tenho pensado muito sobre fantasmas e monstros. Sobre existir no limiar entre dois espaços, sobre estar no meio do caminho, sem poder voltar nem seguir adiante. Essa insistência na perda, mas também no não desaparecimento. Tenho pensado muito sobre desaparições, presenças, silêncios, espaços vazios. E dores que parecem não ter qualquer origem, mas se repetem, como uma forma de sinalizar que aquele corpo ainda existe. Aquele corpo ainda é, apesar de todos os pesares, uma realidade. E como negar a realidade do corpo?
A espera
[Esse conto foi um dos selecionados para entrar na antologia da Ipê Amarelo. Ando com saudade de compartilhar um pouco da minha escrita ficcional, então decidi incluir ela na newsletter dessa semana. A proposta era escrever um miniconto, de até 750 palavras, o que foi um grande desafio pra alguém como eu que costuma escrever contos de 10 páginas.]
Tenho até o fim do dia para morrer. A velha me observa, desconfiada. Depois estica os olhos para enxergar a rua.
— Quando ele vai chegar?
Seu rosto cheio de maquiagem barata craquelando sobre as rugas tem qualquer coisa de patético.
— Em breve — respondo, apaziguadora, fingindo não saber que minto.
A velha vai fazer a mesma pergunta outra vez. Eu vou resistir à vontade de contar a ela que sua espera já dura anos. Não há ninguém chegando. Somos só nós. Dois restos de gente.
No silêncio morno do fim de tarde, ouço o canto das cigarras. Deve ser tão bom esquecer. Amanhã vou estar morta, mas a velha não deve nem reparar. Vai continuar distraída, como um cachorro lambendo uma ferida antiga que ninguém, exceto ele, é capaz de enxergar.
Li, assisti, encontrei
✷ Lentidão e atenção como rebelião em um mundo acelerado: sobre cultivar espaços onde a pressa não entra.
✷ Como todas as pessoas dessa internet de meu deus, passei os últimos tempos vendo: Sandman. Nunca li a HQ e não sabia nem o que ia encontrar, mas gostei bem mais do que esperava.
✷ Também assisti, finalmente, o famigerado Crimes of the future, do Cronenberg, na MUBI*. Um cenário futurista em que a dor física não existe mais e as alterações corporais (principalmente cirúrgicas) são a nova forma de encontrar prazer. Quero muito escrever sobre ele em algum momento, mas por enquanto fiquem com uma Léa Seydoux com implantes na testa falando sobre mapear o caos.
* Aliás, a MUBI tá com uma promoção de 3 meses por R$ 10.
Pequenas alegrias
E não é que essa newsletter despretensiosa chegou a 400 inscritos? Que loucura pensar que 400 pessoas recebem os meus e-mails! Muito obrigada por ser uma delas. 🖤
Li e me vi na tua escrita. Desaparecida do mundo online e do mundo offline.
Não tem nada mais presente do que sua escrita. Sua newsletter, o jeito que ela me tira da zona de conforto e ao mesmo tempo parece que me abraça… você me faz companhia sem nem mesmo estar aqui.