#19 – Quanto pesa a palavra escritora?
Essa semana, precisei me apresentar em uma reunião do trabalho. Como boa introvertida que detesta essas situações, tentei ir falando o que me parecia mais importante: sou revisora, formada em Letras, fiz um mestrado em Teoria literária e uma pós em Marketing, escrevo, já trabalhei com redes sociais… E tenho dois livros publicados. Essa é, mais ou menos, a lista de coisas que eu costumo citar quando me apresento. Porque, no geral, acredito que elas representam bem a minha vida profissional e a minha trajetória até aqui. Ainda assim, em todas essas situações, logo depois que termino de falar, me vem o incômodo: “pra quê você tinha que ficar falando de livro publicado?”.
Afinal, meus dois livros publicados saíram por editoras pequenas, com tiragens pequenas, não são facilmente encontrados em livrarias. E, afinal, ali era uma reunião de trabalho, ninguém se importa com os negócios que eu escrevo… Sem contar que, sei lá, vai parecer que eu tô sendo metida falando dos dois livros que publiquei, né, como se me achasse grandes coisas por isso. Sendo que não sou grandes coisas. E é importante que eu lembre que não sou grandes coisas. Que ninguém quer ouvir sobre os livrinhos que eu publiquei. Que a palavra “escritora” é pesada demais pra mim, como se eu fosse duas crianças empilhadas dentro de um sobretudo tentando se passar por um adulto. É risível, meio constrangedor, todo mundo percebe.
Isso é o que a minha cabeça me diz nessas situações.
Talvez fosse mais fácil pensar que essa é uma insegurança individual minha, mas esses muitos anos trabalhando, direta ou indiretamente, no meio literário já me mostraram que não. Conheci muitas mulheres que, mesmo tendo 3 livros publicados, ainda relutavam em usar o termo escritora. A gente busca subterfúgios: ah, eu não sou escritora, só escrevo umas coisas… Durante muito tempo, eu usava na bio da Instagram a expressão meio-que-escritora. Na época da faculdade, lembro de ter dito a um professor que eu era “escritora”, fazendo o gesto das aspas com as mãos. Ele perguntou: “por que as aspas?”. Acho que desconversei, mas lembro de ter pensado que as aspas eram uma forma de disfarçar o desconforto de me intitular algo que parece fora do meu alcance.
O que é preciso fazer para ser uma escritora? Escrever? Escrever coisas validadas pelos críticos como coisas de qualidade? Escrever coisas não muito validadas pelos críticos, mas aprovadas por quem lê? Publicar? Publicar por uma editora grande e estar nas livrarias? Quem escreve e-books não é escritor? Quem publica na internet não é escritor? Quem agrada o público, mas não os críticos não é escritor? E quem escreve, mas deixa os escritos na gaveta? Afinal, quem é capaz de chancelar, de instaurar essas guaritas e dizer quem pode entrar na categoria escritor e quem não pode?
Não sei — e nem pretendo responder a nada disso com essa newsletter. O que me chama a atenção é que essas indagações parecem incomodar mais as mulheres, que, com frequência, se sentem aquém das exigências subentendidas, como se — mesmo quando somos vistas dentro da categoria de escritoras — nós só tivéssemos entrado graças a um engano de quem estava cuidando da cancela.
Muitos dos homens que conheci, pelo contrário, parecem bastante confortáveis com a ideia de abraçar o rótulo, ainda que nem sempre cumpram os requisitos esperados. Conheci homens que se diziam escritores tendo publicado livros físicos ou não, tendo escrito livros ou não, sendo elogiados ou não. Às vezes, basta um poema recheado de lugares comuns e rimas desnecessárias para que eles se sintam escritores. Parece fácil, simples, natural. E nada surpreendente, considerando que eles, no geral, crescem ouvindo que o que têm a dizer é muito importante para o mundo.
Para os homens, a palavra escritor não parece pesar tanto. Ou exigir tanto. Me lembra aquela história de que os homens se candidatam a vagas quando preenchem metade dos requisitos enquanto as mulheres não se arriscam se não preencherem todos. E nós raramente preenchemos todos. Não por incompetência, porque o que mais tem surgido nos últimos anos são escritoras incríveis, mas porque a nossa régua parece decidida a escapar das nossas mãos. Quando estamos perto de atingir os requisitos, novos requisitos são criados. O que fica é esse desconforto, essa sensação constante de ser uma farsa, alguém que foi parar ali por engano. Uma necessidade constante de menosprezar a própria escrita, enxergá-la como algo menor, não tão importante, não tão merecedora de atenção.
Se os homens (principalmente brancos, cis, heterossexuais, é claro) estão acostumados a serem ouvidos com facilidade, nós não. Pelo contrário, parece que nós nos habituamos desde cedo a esquecer que o que temos a dizer também importa. Afinal, como pensar isso se as listas de prêmios literários muitas vezes têm 49 nomes masculinos e somente 1 feminino? Como eu poderia pensar isso se uma das minhas primeiras referências de escritora durante a infância foi a J.K. Rowling que, nos anos 90, foi instruída pela própria editora a usar somente as iniciais pra que os leitores não soubessem que ela era uma autora mulher e desistissem de ler o livro?
De que forma nós poderíamos acreditar que a nossa voz tem espaço quando passamos tanto tempo ouvindo o rótulo “literatura feminina” como uma forma de marcar uma literatura menor, menos séria, menos importante?
Eu não sei quais são os critérios que definem um escritor. Mas tenho a impressão de que eles são diferentes dos critérios usados para definir uma escritora. Na guarita que nos separa desse espaço exclusivo, a cancela parece que abre com mais facilidade diante de certos grupos. E, mesmo quando entramos, é comum seguirmos na saga de precisar provar constantemente (pra eles e pra nós mesmas) que nós também merecemos estar ali. Que não, não foi um engano. Que o que a gente escreve também importa.
A palavra escritora pesa. Nem sempre eu consigo carregar ou vestir. Às vezes, quando visto, me sinto tentando andar com um sapato 3 números maior que o tamanho do meu pé. Ainda assim, tenho insistido. Porque também me parece que, se a gente for desistindo da palavra e de tudo que ela simboliza, aí mesmo é que os prêmios literários vão ter 50 nomes masculinos e nenhum feminino. Mas insisto também porque a minha vida como leitora foi povoada de escritoras mulheres e sinto que o fato de estarmos aqui, hoje, escrevendo e nos afirmando escritoras, talvez reverbere de alguma forma em meninas que precisam saber que existe escuta. Existe espaço para que elas digam o que precisam dizer.
“Por muito tempo na história, anônimo foi uma mulher.”
(Virginia Woolf)
Li, assisti, encontrei
✷ Sobre memória, morte e ficção, uma thread maravilhosa da Clara Madrigano.
✷ Em uma edição recente da newsletter, falei sobre como aprender outro idioma me faz sentir que não sou a mesma pessoa e hoje acabei esbarrando com esse post sensacional sobre o fenômeno de acreditar que a nossa personalidade se transforma quando falamos outra língua.
✷ Exercitando utopias: alguns depoimentos de escritores sobre utopias literárias.
✷ Um conselho do David Bowie para artistas.
✷ Como muitos millennials, fiquei impactada com os shows do Green Day, Fall out boy e Avril Lavigne no Rock in Rio. Vi do meu sofá, é claro, por motivos de: hérnia de disco, preguiça, falta de dinheiro; mas fiquei tão nostálgica que até ressuscitei uma playlist antiga só com músicas dos anos 2000 (99% composta de músicas emo).
Novidade
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Vejo vocês lá!
Bom te ler. Da - hesitante - escritora do lado de cá, confortante ver seu processo do lado de lá.
:)
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