#22 – Falar é existir
Semanas atrás, terminei de ler Eu que nunca conheci os homens, romance da autora belga Jacqueline Harpman. O livro começa com 40 mulheres sendo mantidas em uma jaula por diversos guardas que permanecem sempre em silêncio. Elas não sabem como foram parar ali ou por quê. A narradora — que, ao contrário das outras mulheres (todas adultas), chegou ali criança — sequer consegue lembrar de como era a vida lá fora. Só o que ela conhece é a vida dentro da jaula, com as comidas servidas pelos guardas e os hábitos coletivos das mulheres que, já acomodadas à prisão, buscam formas de conviver melhor umas com as outras.
Chamada de Pequena pelas companheiras de cárcere, a narradora vive um isolamento duplo: o isolamento de estar ali, presa, mas também o de não conseguir se conectar com as outras mulheres, que partilham entre si o vínculo com o mundo antes da jaula. Essas lembranças de uma vida anterior e tudo que havia nela — inclusive as relações amorosas com os homens — são um espaço inacessível à Pequena, que acaba por se sentir deslocada do grupo.
Observadora e perspicaz, ela vai entendendo também que, no cenário desesperador em que se encontram, diante das memórias cada vez mais desbotadas, aquelas mulheres buscam na fala uma forma de continuar existindo, reafirmando a própria existência no mundo.
“Elas ficavam agitadas enquanto tagarelavam. Era a primeira vez que eu as escutava com atenção e fiquei surpresa com a abundância da fala delas, a paixão com que repetiam dez vezes a mesma coisa de outro jeito para não perceberem que não tinham, no fim das contas, absolutamente nada a dizer umas às outras há séculos, mas um ser humano precisa falar, senão ele perde sua humanidade, eu entendi isso nos últimos anos. E aos poucos fui ficando com pena delas, daquelas mulheres determinadas a viver, a fingir que agiam, que tomavam decisões na prisão onde estavam confinadas em definitivo, da qual só sairiam ao morrer — será que recolheriam os cadáveres? — e onde não podiam sequer se matar.”
Encarceradas e impossibilitadas de exercer qualquer controle sobre o próprio destino, as mulheres discutem sobre o que podem cozinhar com a comida dada pelos guardas, de que forma fazer os legumes, entre outros assuntos triviais, porque — como diz Pequena — é preciso seguir falando para preservar algum traço de humanidade. Conforme a trama avança, no entanto, vamos acompanhando uma diminuição progressiva dessa fala, não só pelo cansaço de procurar respostas que não chegam, mas também pela sequência de mortes que vai diminuindo o grupo.
Nessa segunda parte do livro, quando as personagens já se libertaram da jaula e caminham em busca de ajuda, vai crescendo também a sensação de aridez, desamparo e solidão. [E aqui vou incluir um spoiler, então, se você não quiser ler, essa é a hora de pular os dois próximos parágrafos.]
Ao contrário do que a narradora e o próprio leitor esperam, as respostas não vêm. Apesar de todo o esforço das 40 mulheres e de sua busca incansável, nem elas nem nós, leitores, recebemos uma explicação satisfatória para o que houve. E é também essa falta de respostas que dá à narrativa um tom desolador, assombroso. Entre corpos de desconhecidos, um cenário desértico e um silêncio crescente, não há nada que amenize a sensação de abandono.
Enquanto chegava ao fim da leitura, percebi, inclusive, uma certa frustração da minha parte. Um lado meu esperava que houvesse mais explicações, mais respostas, alguma reviravolta, um grande acontecimento. Mas nada disso veio. Pelo contrário, parece que vamos mergulhando, cada vez mais, no esvaziamento de qualquer sentido. Ao final da narrativa, sentimos o gosto amargo de quem tenta buscar explicações pro horror e volta de mãos abanando. Não há lógica, resposta, justificativa. Só o que resta à narradora é aceitar a aparente aleatoriedade de seu destino, os acontecimentos misteriosos que a conduziram até ali, sem que ela tivesse controle sobre o que vivia.
Eu que nunca conheci os homens é uma daquelas leituras que ainda ficam latejando mesmo dias depois de terminadas. Os cenários quase distópicos de isolamento, em que a narradora busca uma pessoa viva e acaba esbarrando com dezenas de corpos, são mais aterradores que muitas histórias de terror que eu li nos últimos tempos. Porque, aqui, o que realmente assusta vai além da solidão e do desamparo da situação. O verdadeiro assombro é ser carregada por uma sucessão de eventos sobre os quais temos pouco ou nenhum controle. Entregues ao desconhecido e sua terrível recusa em nos mostrar que há algum sentido no que nos acontece.
Annie Ernaux e o etarismo misógino de cada dia
Annie Ernaux — autora francesa de 82 anos — ganhou o prêmio Nobel essa semana. E, embora esteja viva e bem, as fotos que muitos sites usaram pra ilustrar a notícia foram fotos dela jovem. Incrível como, mesmo ganhando um Nobel, parece que eles ainda acham que a nossa função principal é uma função decorativa: é preciso estar bela (e consequentemente jovem, pois para eles parece não existir beleza fora da juventude), ainda que a notícia não tenha nada a ver com isso.
Li, assisti, encontrei
✷ Falando em Annie Ernaux, ontem peguei pra ler O lugar, um dos livros dela que saíram pela Fósforo. Em breve, conto o que achei!
“Sempre que me falavam de meu avô, começavam dizendo que ele “não sabia ler nem escrever”, como se sua vida e sua personalidade não pudessem ser compreendidas sem esta informação básica.”
✷ Não sei se já comentei aqui, mas eu sou uma grande viciada na categoria reality show. Aqueles de competição: assisto todos. Já vi todos de comida e decoração, Glow up, Next in fashion, Vidrados, Batalha das flores, Mestres de ferro, entre muitos outros. Pois agora estou viciada em O sabotador, um reality doido em que um grupo de doze participantes deve cumprir vários desafios, acumulando um prêmio em dinheiro. O porém é que um deles é um impostor colocado lá pra sabotar o grupo, e ninguém sabe quem (nem a gente). Reality maravilhoso pra se distrair do burnout político.
✷ A Toranja, newsletter que adoro, lançou um desafio de escrita pra outubro. Já estamos no dia 9, mas ainda assim acho que vale a pena participar, mesmo que seja pra escrever e guardar na gaveta, porque é um ótimo exercício.
✷ Um pequeno desabafo sobre a frustração de perceber que o Brasil ainda está muito distante do Brasil que a gente deseja.
Oba! Que delícia ver a Toranja aqui! A ideia é essa mesma: exercitar!
Obrigada pela indicação!
Adoro te ler.
beijo