#30 – Tentativas de não comer o sofá
Enquanto escrevo essa newsletter, Alice destrói com voracidade um chinelo velho que dei a ela. A cama já está cheia de pedaços, mas ela segue puxando, mordendo, retorcendo, dilacerando. Alice é uma cachorra jovem e agitada, que precisa de estímulos constantes ou cai num tédio perigoso, partindo pra destruição de coisas menos propícias, como o sofá. Vendo a destruição do chinelo, fico pensando em como estão no DNA dela esses gestos que seus antepassados usavam pra dilacerar as presas caçadas. A forma como ela segura a base do chinelo e puxa a alça é muito semelhante à maneira como um lobo arranca a carne de uma carcaça. É da natureza deles. E não fazer aquilo que a nossa natureza nos pede traz um preço alto demais.
De certa forma, me identifico com as ansiedades destrutivas da Alice. Principalmente agora, que ando pagando o preço por três anos de sedentarismo profundo e tento — aos poucos, bem aos poucos — engatinhar pra fora da falta de movimento. Minha terapeuta disse uma vez que o exercício físico era fundamental pra minha ansiedade, porque a minha cabeça está sempre funcionando a 200 km/h e isso gera uma espécie de carga que precisa ser extravasada fisicamente. Na minha experiência, essa teoria parece bem real. Em dias de muita ansiedade e pouco movimento, começo a sentir o corpo feito uma panela de pressão. E a ansiedade que não consigo colocar para fora vai aos poucos virando outras coisas, como uma irritação voraz, uma vontade de quebrar qualquer coisa que apareça na minha frente, um impulso destrutivo.
Gosto muito de algo que a Liz Gilbert diz em Grande Magia:
“Afinal, ter uma mente criativa é como ter um cão pastor como animal de estimação: ele precisa se exercitar, do contrário vai lhe causar uma quantidade escandalosa de problemas. Dê a sua mente um trabalho a fazer ou ela acabará encontrando um, e você pode não gostar do trabalho inventado por ela (comer o sofá, cavar um buraco na sala de estar, morder o carteiro etc.). Levei anos para aprender isso, mas cheguei à conclusão de que se não estou ativamente criando algo, é provável que esteja ativamente destruindo algo (a mim mesma, um relacionamento ou minha paz de espírito).
Acredito piamente que precisamos todos encontrar algo para fazer na vida que nos impeça de comer o sofá.”
Liz Gilbert
Perceber em mim esse funcionamento também faz parte de algo que tenho cultivado desde os últimos meses de 2022: uma espécie de autoinvestigação. Como quem observa uma máquina pra tentar reparar os pontos em que o funcionamento se embola, tenho aderido a essa prática de observar fenômenos, identificar padrões, pensar estratégias. Comecei a fazer isso vendo vídeos de pessoas neurodivergentes no TikTok, que — críticas à parte — falam sobre como aprenderam a detectar gatilhos e a desenvolver táticas pra lidar com eles. No fim das contas, em um mundo de comportamentos padronizados, que frequentemente espera que a gente reaja da mesma forma aos acontecimentos, me parece que faz sentido começar a repensar o que de fato funciona e o que não funciona pra cada um. Por exemplo: acompanhando relatos de sobrecarga sensorial, descobri que alguns dos meus episódios de profunda irritação/angústia/cansaço-generalizado escondiam, na verdade, uma dificuldade de lidar com o excesso de estímulos. Pra muitas pessoas, um lugar cheio de gente falando ao mesmo tempo talvez seja indiferente. Pra mim, pode demandar uma boa dose de energia (que nem sempre eu tenho pra dar).
Nessa auto-observação, muitas vezes me pego comendo o sofá porque deixei de fazer o que deveria. Não reparei no gatilho a tempo, ou não dei ao meu corpo o que ele pedia, ou me deixei vencer pelo perfeccionismo e parei de escrever, ou me forcei a enfrentar uma situação que estava além do que eu poderia administrar. A panela de pressão é ativada de muitas formas diferentes, mas, se não tomo cuidado, o fim é sempre o mesmo: o teto da cozinha todo sujo de feijão. É o preço que eu pago por não ter ouvido o que a minha natureza pede. Assim como os sapatos destruídos que recebo quando não levo a Alice pra passear e gastar sua energia canina. Quase como se ela estivesse dizendo: olha aí, quem mandou. As necessidades dos cachorros são muito evidentes, eles não disfarçam. Assim como as do nosso corpo, nossa mente. E, ainda assim, parece que constantemente ignoramos esses avisos, tentamos contornar o incontornável. Até que algum sofá apareça devorado.
(Fica o desejo pra 2023 registrado nessa primeira newsletter do ano: espero que esse ano você encontre alguma coisa que te impeça de comer o sofá.)
Li, assisti, encontrei
✷ A primeira playlist de 2023: pra tardes inofensivas de domingo, dando uma arrumadinha na casa, contemplando a existência.
✷ Tóquio na literatura. Uma listinha que me deixou bastante interessada (ler mais literatura asiática está nos meus objetivos pra esse ano).
Maíra é exatamente isso tudo! Amei o texto e a fotinho da Alice 💗
adorei o texto, maíra! e mais ainda a legenda da foto e a carinha da alice <3