#32 – A difícil arte de coordenar tentáculos
Sempre admirei muito as pessoas comprometidas com uma coisa só. Que sustentam uma coerência sólida, que não desfocam da própria continuidade. Gente que começa e termina projetos, que passa anos se dedicando ao mesmo trabalho, que usa sempre o mesmo estilo de roupa, gente que não muda de ideia facilmente. Gosto da firmeza disso. Pessoas assim são territórios fixos, confiáveis. Você pode andar sem temer que uma mudança brusca, de repente, fragmente o chão onde você está pisando e cause uma queda que não era esperada.
Gosto disso justamente porque sou o oposto. Mudo de ideia 48 vezes por dia, raramente concordo comigo mesma, posso tomar uma decisão agora e já na semana que vem sentir que não faz mais sentido. Começo muitos projetos, abandono boa parte deles. É que no caminho sempre aparecem outras coisas, outras ideias, possibilidades, novidades. Trajetos que de repente me parecem mais interessantes do que aquele escolhido antes. Muitas coisas me interessam, me atraem, me empolgam. Na época da graduação, me enfiei em dois projetos diferentes de iniciação científica, com três orientadores. Eu brincava dizendo que era uma pesquisadora não-monogâmica. Não conseguia me restringir a um assunto só, a um amor só. Eu queria ser um polvo, mexer cada um dos meus tentáculos em um ritmo diferente e — ainda assim — conseguir não perder a música.
Se você me segue no Instagram, já deve ter me ouvido contar a famigerada história do cara que trabalhava comigo e disse que não existia ninguém sólido dentro de mim, que a cada dia eu acordava e decidia ser uma pessoa diferente. Foi uns 9 anos atrás, mas eu fiquei obcecada por essa descrição porque acho ela certeira (obrigada, Glaucio). E, embora isso já tenha me trazido muito sofrimento, agora estou tentando perceber alguma beleza aí. Admiro as pessoas sólidas, mas eu sou espalhada. Fluida. Volúvel. Mutante.
O que não é muito fácil. Me parece que vivemos, no fim das contas, em um mundo de monoentendimentos. De monogamias, monocaminhos, monocarreiras, monotudo. Quem tenta fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo é visto como disperso. Quem nutre mais de uma paixão é chamado de indeciso. Quem trabalha com várias coisas, diz o senso comum, não deve fazer nenhuma delas de maneira bem feita. Nós, os espalhados, somos considerados pouco confiáveis, pouco leais, pouco consistentes. Ao contrário do território firme das pessoas sólidas, nós somos vistos como um terreno capaz de mudar a qualquer momento. As personificações do imprevisível.
Isso deve explicar por que tantas pessoas-polvo amputam os próprios tentáculos pra tentar caber numa lógica que não faz nenhum sentido pra elas. Eu sei porque também tentei. Acabei infeliz fazendo uma coisa só, olhando de rabo de olho pras outras tantas paixões que seguiam flertando comigo de longe. Ainda assim, eu estaria mentindo se dissesse que não desejo, com frequência, ter nascido uma pessoa não-espalhada. Porque me parece deliciosamente simples, muito menos caótico, bem mais viável de administrar. Por aqui, eu choro perdida entre tantas ideias diferentes, sem saber em qual mergulhar primeiro, tendo a consciência de que, ainda que eu tivesse todo o tempo do mundo e vivesse até os 90 anos, não conseguiria executar tudo que eu gostaria. Trabalhar com essa impossibilidade também é importante pra não enlouquecer. É preciso aceitar que não vou escrever todos os livros que queria, que não vou trabalhar com tudo que me desperta fascínio, que não vai ser possível estar em todos os lugares ao mesmo tempo. E toda escolha é, afinal, uma perda.
Embora abrir mão seja uma tarefa dolorosa pra quem tem tentáculos.
Voltei
Depois de um looooongo recesso (que era pra ter terminado há bastante tempo, mas, devido a algumas tretas da vida, acabou se estendendo), essa newsletter, enfim, está de volta. Tenho tentado equilibrar muitos pratinhos diferentes — trabalho, freelas, casa, escrita do livro, curso de design gráfico, um pré-projeto de doutorado —, mas… Seguimos, firmes e fortes (não tão firmes, também nem tão fortes).
A
Li, assisti, encontrei
✷ Maratonei os filmes do Oscar recentemente e meu grande apaixonamento ficou por conta de Tár. Em uma época de extremismos, gosto de como ele traz certas contradições incômodas pro espectador. Lydia Tár é alguém que usa o seu lugar de poder pra subjugar outras mulheres. Mas Lydia também é uma mulher, lésbica, que se destacou em uma profissão predominantemente masculina. Se o personagem fosse um homem heterossexual, o filme não seria o que é, talvez fosse até um filme mais fácil. O incômodo de Tár é mesmo esse, inclusive porque, embora Lydia simule diversos comportamentos predatórios de homens heterossexuais, é impossível esquecer que ela não é um homem heterossexual. E o filme faz questão de deixar isso claro ao mostrar quão assombrada ela é. Lydia não sai impune como um homem sairia: nem pela sociedade (todos nós sabemos que ela seguiria eternamente ovacionada se fosse um homem, ainda que carregasse 438 processos nas costas), nem por ela mesma (como disse a
✷ A Catharina, que eu já gosto muito de acompanhar no Instagram, começou uma newsletter, com dicas maravilhosas sobre literatura, arte e cinema.
✷ Arte criada por inteligência artificial é arte? Eu sei lá. Acho que não. Mas, grandes debates à parte, ando apaixonada por alguns perfis que postam imagens inusitadas criadas por AI.
Tão confortante se ver nas palavras de alguém 🫶🏽
Adorei ler este texto porque sou o que você definiu como pessoa sólida e sempre admirei as pessoas-polvos. :)