Acabou o meu Rivotril, estou tomando mais do que deveria, o médico da emergência disse bem assim na minha cara Você está fazendo tudo errado, eu dei uma risadinha, depois chorei, ele perguntou O que houve? e eu respondi Nada, mas queria ter dito Como assim o que houve, meu filho, qual é a parte desse desastre que você não entendeu? Era a terceira ida à emergência, depois de uma semana inteira com a pressão altíssima, muitos remédios, dores de cabeça intermináveis, meu coração parecendo uma rave, a ansiedade gritando no meu ouvido olha aí o infarto olha aí o AVC olha aí o colapso iminente olha aí olha aí — e o coração tum tum tum tum. Meu coração vive em estado de alerta. Meu corpo está sempre pronto para guerra. Agora ando viciada em relaxante muscular para dormir, 3 comprimidos de Rivotril mais 1 relaxante muscular e puf, eu despenco na cama feito uma fruta podre que se estatela do alto da árvore, um verdadeiro desmaio, acordo no dia seguinte sentindo que pude morrer um pouquinho (e como é bom morrer um pouquinho).
Pela manhã, sempre penso que tudo vai se resolver, hoje vai ser um bom dia, hoje vai ser diferente, olha só como eu estou me sentindo bem depois dessa noite de coma (na verdade, eu sou biólogo e posso afirmar que esse animal está em profundo sofrimento, diria alguém no Twitter). Esse animal se distrai planejando novas tatuagens, traçando grandes planos raramente executados, pedindo mais deliverys e tomando menos sol do que deveria, sentindo saudade de épocas remotas que nem eram tão boas assim, mas, de alguma forma, agora, parecem lindos paraísos. Esse animal não consegue terminar a leitura de um livro desde fevereiro. Ainda não declarou o imposto de renda. Promete que vai lavar as janelas todo final de semana, mas a hérnia de disco não deixa. Um animal cansado.
Às vezes tenho vontade de parar no meio do supermercado e sentar no chão. Virar pra alguém no meio do ônibus lotado e perguntar Você também não se cansa de ser uma pessoa? Porque ser uma pessoa me estragou a saúde. Os médicos pediram que eu fizesse aquele exame que coloca um aparelho para medir a pressão 24h por dia, um deles explicou que no consultório a pressão pode ficar alterada, pois as pessoas estão em condições que despertam a ansiedade, então o MAPA (acho bonito que o nome do exame seja MAPA) é uma forma de verificar como oscila a pressão em condições normais. Eu encaro a inocência dele e penso em como começar a explicar que não existem condições normais para mim. A existência pura e simples desperta a minha ansiedade. Existir é uma língua enfiada no meu olho. Quando eu era criança, reclamava que o meu peito coçava por dentro. Não era a pele, era lá dentro, uma coceira entre os órgãos. Ninguém entendia. Nem eu. Existir é essa coceira entre os órgãos, 48 comprimidos de Rivotril não são capazes de resolver.
Me pergunto se já existe algum estudo sobre o envelhecimento dos corações ansiosos, pois o que eles pulsam em 1 ano os corações normais devem levar 10 anos para pulsar. Isso explica por que já tenho, aos 33, uma quantidade considerável de cabelos brancos. É que a gente vive o que acontece, o que aconteceu, o que poderia ter acontecido, o que talvez aconteça, o que jamais aconteceria, tudo ao mesmo tempo agora. (Esse animal está em profundo sofrimento.) A vida arde na minha retina, todos os dias acordo, olho o mundo, sinto que há qualquer coisa de corrosivo engolindo meu corpo aos poucos. Talvez ele mesmo. Um corpo que se engole. Tempos atrás, li que o organismo dos alérgicos enxerga elementos comuns como terríveis ameaças. Alérgicos são pessoas que montam defesas absurdas para ameaças inexistentes. A ansiedade vai pelo mesmo caminho. Nós, os alérgicos e os ansiosos, estamos sempre prontos para uma guerra que não chega nunca. É de uma grande ironia, pois as ameaças verdadeiras, quando chegam, sempre chegam por outro lado — e, inevitavelmente, nos pegam desprevenidos. Você não se cansa de ser uma pessoa? Eu, sim.
Um minutinho da sua atenção
Bastante gente nova chegou por aqui (muito obrigada), então fica essa apresentação breve e desajeitada: meu nome é Maíra, sou formada em Letras, fiz um mestrado em Teoria literária e agora estou matutando um doutorado também (claramente: louca). Amo programas de jovens idosos, plantas, livros e papelarias. Também desenho, pinto, faço colagens. Sou mãe de uma vira-lata caramelo chamada Alice e boto doce de leite em tudo.
Aproveitando esse momento, queria pedir a vocês — pessoas novas e pessoas antigas que me acompanham — que tirassem 1 minutinho para responder um questionário que eu preparei para me ajudar a pensar no futuro dessa newsletter. Nessas últimas semanas, andei refletindo muito sobre a grande mistura que tem sido isso aqui, o que eu gostaria de trazer mais, o que gostaria de trazer menos. E uma das ideias é revitalizar a versão paga da newsletter com algumas novidades.
Se você puder responder, é só clicar nesse link aqui. Muito obrigada.
Li, assisti, encontrei
✷ Sobre a criatividade como via de acesso.
✷ A beleza de abrir mão das pretensões.
Penso em todas as práticas desinteressantes que levo para frente apenas por possuir algum grau de aptidão para elas, por enxergar nelas alguma serventia; penso nas coisas que me fazem bem e que deixei inacabadas pelo meio do caminho por não ser boa o suficiente para transformá-las em algo útil. Sei lá, nem sei o que útil significa. Não sei por que essa palavra tem tanto peso. Não sei a quem serve esse utilitarismo constante de absolutamente tudo.
(Mariana Moro, na
✷ Já ouviu falar em flexitarianismo? Tenho seguido esse caminho por aqui e tem sido bom pra mim. Qualquer hora vou escrever uma edição inteira sobre a beleza do caminho do meio. O caminho do que é viável, o caminho do é-o-que-tem-pra-hoje, o caminho que permite que a gente faça alguma coisa sem cair nas exigências utópicas do tem-que-fazer-tudo-ou-então-nem-adianta-começar.
✷ A newsletter da Bianca é uma das que eu mais gosto de acompanhar por aqui — e essa edição em especial foi maravilhosa de ler.
A cidade fala com a gente: as vitrines da importadora chinesa mostram os mais diversos bibelôs mal feitos. Durante uma vida me peguei emocionada sempre que via um objeto feio. Hoje entendo porque: é tão ruim que só pode ser sincero.
(Bianca Zampier, na
você também não se cansa de ser uma pessoa? me identifiquei tanto com essa frase...
agradeço muito pela citação e sinto muito mesmo por essa vivência que você está atravessando. saiba que não está sozinha. ser uma pessoa vem com muitos poréns e parênteses que não constam no manual de instrução e aí quando a gente vê está nessa espiral. exige muita coragem se escancarar como você se escancarou e acho isso lindo!
um abraço apertado e um beijo grande aqui deste lado. <3
meu coração também anda disparado. em meio à crise de asma, remédios mil e a ansiedade. daí me identifiquei demais com este trecho: "Me pergunto se já existe algum estudo sobre o envelhecimento dos corações ansiosos, pois o que eles pulsam em 1 ano os corações normais devem levar 10 anos para pulsar."
um abraço enorme em você <3