Fevereiro de 2020. Meu aniversário de 30 anos. Uma imagem gravada na minha memória: eu e alguns amigos, uma casa com piscina, strogonoff de frango, cerveja. A gente, de biquíni molhado, cantando alto: meu amor, olha só, hoje o sol não apareceu. É o fim da aventura humana na Terra. Um mês depois, chegava ao Brasil a pandemia de covid-19. Trancada em casa, eu me lembrava do meu aniversário, sem máscaras, sem contágios, e inevitavelmente pensava na palavra: despedida.
Uma pessoa com ansiedade vive muitas despedidas por dia. Tudo carrega o potencial de ser catastrófico, o fim do mundo acontece a todo instante. E mesmo dormindo com o desastre diariamente, ainda não aprendi a ficar imune a ele.
Uma vez estava assistindo a um daqueles programas de true crime quando uma das vítimas comentou: “a gente nunca acha que vai acontecer com a gente”. Pane no sistema: então não era normal vestir a carapuça das desgraças? Como assim a gente não acha que vai acontecer com a gente? Eu sempre acho. As piores coisas do mundo já aconteceram comigo milhares de vezes dentro da minha cabeça. Só então entendi que é por isso que boa parte das pessoas consegue navegar pela vida razoavelmente bem. De alguma forma, elas não pensam em tudo de horrível que está acontecendo no mundo ou que ainda pode acontecer com elas — algo que eu faço sempre, o tempo todo, sem parar. De alguma forma, elas conseguem esquecer.
Esquecer é um objetivo frequente por aqui. Tento muito esquecer. Cultivo o esquecimento, alimento o esquecimento, imploro pelo esquecimento. Às vezes, o que funciona é uma série ou livro suficientemente bom para me manter alienada durante algum tempo. Às vezes, as distrações diárias dão conta. Ir à praia, beber uma caipirinha de abacaxi e comer um pastel de camarão, sentir o sol na pele salgada de mar. É breve, mas nessas horas esqueço. Está temporariamente desativado o mecanismo dos piores cenários possíveis.
Entre céus laranjas e ares insalubres, vou à faculdade para o grupo de estudos em que vamos ler — entre outras coisas — livros de “cli-fi”, uma ficção científica que se debruça sobre as mudanças climáticas. Oscilo entre uma resignação azeda e uma esperança talvez ingênua de que podemos reverter o desastre. No meio do caminho, aparece ali, outra vez: a vontade de esquecer. Me distrair, não olhar, não pensar no pior que pode (e provavelmente vai) acontecer. Sinto que estamos indo ladeira abaixo e o freio não está ao nosso alcance, então qual é o sentido de continuar prestando atenção? Qual é o sentido de manter os olhos fixos na queda?
Quando meu cachorro morreu, resolvi fazer uma campanha de arrecadação para uma ONG que resgatava animais abandonados. Eu acompanhava os posts deles com frequência e sofria, sofria muito. Mas nessa época entendi que, para não sofrer, muitas pessoas preferem não ver. Não seguem, não acompanham, passam batido. Eu não julgo. Cada um sabe o que aguenta e, quando consigo, eu também desvio o olhar, também me distraio. Mas então de repente me lembro que, enquanto estou distraída, os animais ainda estão lá, precisando que eu pare de me distrair, que eu volte a prestar atenção. E lembrar disso é uma queimadura no fundo da minha garganta.
O esquecimento também cobra o seu preço. Os distraídos se habituam ao céu laranja com facilidade.
Quando começaram as queimadas, não me envolvi tanto no assunto. Estava me sentindo fragilizada demais para sustentar o desconforto. Ainda assim, passou por mim o vídeo de um filhote de macaco sendo resgatado, todo sujo, chamuscado, os olhos imensos de medo, as duas mãos segurando com força uma garrafinha de água. Saí rápido do vídeo, mas não consegui mais esquecer o rosto dele.
Pequena Eva foi uma das minhas músicas favoritas na adolescência. Embora seja uma música de axé, ela sempre me deu vontade de chorar. Não sei se porque desde nova eu já pensava no fim do mundo, se pelo É o final da odisseia terrestre ou pelo O nosso amor na última astronave, mas me encantava essa imagem de um planeta em derrocada, vivendo seus últimos instantes. Era uma música de despedida que também carregava uma promessa de novos territórios. É o fim por aqui, mas ainda é possível migrar. Nós não temos perspectivas de fazer o mesmo. O que resta é a terra devastada, aquilo que agora os psicólogos chamam de “ansiedade climática” e uma pesada impotência afundando nossos braços enquanto tentamos seguir com a vida e mergulhar em distrações para não enlouquecer.
Me parece que o esquecimento também não vai ser uma opção por tanto tempo. Ainda que os céus laranjas se incorporem ao cotidiano, haverá sempre novos colapsos, possivelmente maiores, para chacoalhar nosso olhar desavisado. Costumo pensar que, no fim, vamos nos arrepender por termos nos distraído tanto. Mas acho que não: talvez estejamos distraídos demais até para isso.
Li, assisti, encontrei
✷ As dores e sabores de escrever pra internet.
✷ Um dos textos que mais gostei da . Inclusive, a é uma das newsletters que mais tenho curtido acompanhar.
✷ Uma carta de amor ao papel. A rata-de-papelaria-viciada-em-cadernos que sou se identificou muito com esse texto da .
Céu azul?
Depois do falecimento do Twitter/X, acabei entrando pro tal do Bluesky e tenho achado a rede bem simpática por enquanto. Não sei se por ainda ser uma novidade e conservar aquele espírito de cidade pequena, mas não tenho visto as coisas tenebrosas que diariamente invadiam a minha timeline do Twitter. Quem estiver por lá, me acha!
Uma comemoração
Entre hiatos, confusões & gritarias, chegamos a 2.300 inscritos por aqui, o que me deixa feliz demais! Ando com muitas ideias para esse espaço, espero ter vocês comigo para mais cafezinhos caóticos.
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obrigada pela recomendação, querida <3
Muitas das canções dos anos 80 anteviam o fim do mundo. E o faziam com muito amor e carinho.