#5 – Convite aos desregulados
[Para ler ouvindo: Senhas — Adriana Calcanhotto.]
Hoje vai ter uma festa. Só estão convidados aqueles que muitas vezes não foram convidados pra festa alguma. Aqueles que viram e ouviram festas acontecendo em outros cantos, mas não puderam participar. Os que, fora da festa, esperavam um acontecimento. Os que viveram — e ainda vivem — o luto pelo acontecimento que ficou de vir e não veio. Sim, só serão convidados aqueles que conversam muito com o silêncio. Que já tatearam com as mãos o rosto áspero do vazio. Que passam muitos sábados à noite em casa. De roupa furada, tomando um Dorflex ou um Rivotril. Aqueles que andam com a vitamina D lá embaixo e ficam de marcar um médico mas nunca marcam. Os que, aos 30, já carregam uma hérnia de disco, um transtorno mental ou uma enxaqueca crônica. Os exaustos. Os que têm o rosto estampado por olheiras, cicatrizes e pelos encravados.
Vão ser convidados somente os que já estão cansados de chorar, mas ainda choram, porque entendem também que no gesto de chorar ainda há qualquer coisa de humanidade. Aqueles que choram enquanto lavam a louça ou varrem a casa. Mas também os que faxinam com raiva, a playlist emo dos anos 2000 no talo. Todos que gritam I’m nooooooooot oooooookaaaaay junto com o Gerard Way.
Serão convidados os que têm cadeiras com roupas amontoadas em cima, esperando um momento de disposição pra organizar. Os que vão juntando copos na mesa de cabeceira. Os que guardam tralhas inúteis e nunca acham a tampa do tupperware. E também aqueles que começaram a fazer uma obra e não tiveram dinheiro pra terminar. Os que todos os dias encaram o inacabado, o desajeitado, as ruínas do que era pra ser e não foi. Todos que fazem gambiarras e remendos. Os donos de azulejos lascados, pisos estragados, paredes descascadas.
Assim como aqueles que passam 8 horas por dia em um emprego labiríntico e saem do expediente como quem saiu de um moedor de carne. Todos que se sentem um hamster diariamente girando uma roda que não chega a lugar nenhum. Os endividados, os desempregados, os artistas que ainda não descobriram bem como se colocar à venda (e também os que descobriram e se arrependeram de ter descoberto). Os que fizeram 3 faculdades diferentes e ainda não sabem o que fazer com a própria vida. Os que não fizeram nenhuma e também não sabem. Os que tinham grandes planos, os que carregaram grandes expectativas. Os que, aos 20 e poucos, tinham a faca e o queijo na mão, mas comeram a faca e enfiaram o queijo no cu. Todos aqueles que seguem tentando algum caminho novo mas parecem sempre voltar com as mãos abanando. Os flopados, esquecidos no churrasco, os que não fazem sucesso no Instagram. Os que publicaram livros e não foram lidos. Os que muitas vezes ficaram falando sozinhos.
Nessa festa, só será permitida a entrada dos desregulados. Dos contraditórios, covardes, cruéis, dos sujos. Somente os surtados serão convidados. Os vingativos, os que dormem e acordam com sangue nos olhos, os que são engolidos pela própria fome, os que seriam capazes de incendiar uma cidade inteira com o próprio grito. Os amargos, os ácidos, os que não aguentam mais performar doçuras. Os que têm socos não dados criando coceira nas palmas das mãos. Os que direcionaram a fúria para o lugar errado — inclusive, para eles mesmos. Os que já tiveram o corpo atravessado pela brutalidade.
Essa vai ser a festa dos rejeitados. Dos excluídos, dos invisibilizados. Dos que nunca receberam flores. E, por isso, na festa, teremos flores. Essa vai ser a festa dos esquecidos. E, por isso, na festa, vamos lembrar uns dos outros. Tatear o rosto uns dos outros, reconhecer uns aos outros. Não, hoje não vamos disfarçar nada.
Li, assisti, encontrei
Titane
Comentei no Instagram que Titane desgraçou a minha cabeça e acabei escrevendo uma resenha sobre o filme. Se você quer um horror com doses de humor macabro e uma pegada ciborgue/híbrida/pós-humana, essa é uma ótima opção. Vem ler a resenha pra saber mais sobre o filme.
Os vídeos do Alex Voinea
Não necessariamente gosto do resultado, mas os vídeos do processo criativo do artista Alex Voinea são hipnotizantes. A forma como ele brinca com o movimento das tintas e a interação entre as cores é incrível.
Lookinhos coloridos pra enfrentar os dias
Estou apaixonada pelos looks da Elisa Santiago. Eu, que tenho uma alma gótica de nascença, ando com vontade de me jogar mais nas cores, e ela tem sido uma inspiração (além da maravilhosa Elaine Quinderé, consultora inclusiva e super atenta às questões de corpos fora do padrão).
Até a próxima!
Maíra
Adorei o texto. E amo Senhas há pelo menos uns 18 anos ❤️. Eu sempre canto com vontade, a parte " eu gosto dos que tem fome e morrem de vontade, dos que secam de desejo dos que ardem." Seu texto me fez lembrar do meu ensino fundamental, da minha timidez, das mentiras absurdas e engraçadas que eu inventava, das minhas vizinhas idiotas, dos meus segredos inconfessáveis e das dúvidas que sempre me lançavam sobre quem eu era, me fazendo sentir que eu merecia mesmo abaixar a cabeça. Gostei da sua ideia de festa, acho que vou fazer também. Difícil é encontrar a galerinha que tenha a alma desse evento, já que só conheço figuras como as que Fernando Pessoa uma vez descreveu, se não me engano em Poema em linha reta: " todos os meus amigos tem sido campeões em tudo"..." Arre, estou farto de semi deuses, onde é que há gente no mundo?"