#6 – O resto é memória
[Para ler ouvindo: Starlight — Muse.*]
*Música que o Pedro me indicou lá em 2006 e eu ouço até hoje.
Na noite do último sábado, recebi a notícia de que um amigo de infância tinha se matado. A gente não se falava ou se via há anos. Que eu me lembre, a última vez foi em 2014, quando ele me surpreendeu indo ao lançamento do meu primeiro livro. Na época, eu achei um gesto bonito, lembro de ter pensado: a gente precisa ter mais contato. Mas depois veio a vida, ele foi morar fora do país, eu fiquei aqui, e o contato seguiu rarefeito.
Passei boa parte dos últimos meses escrevendo contos — que se revelaram, sem que eu percebesse, contos sobre infância e abandono. A escrita tem mesmo disso, a gente pensa que está escrevendo sobre X e de repente percebe que, na verdade, era sobre Y. Descobri que tenho escrito sobre infância, abandono, violência. Enquanto escrevia e fazia pesquisas pra escrita, acabei me deparando com uma frase da Louise Glück: "Nós olhamos para o mundo uma vez, quando crianças. O resto é memória." Agora penso que essa frase talvez explique um pouco a minha relação com o Pedro.
Nós éramos da mesma turma desde, sei lá, o jardim. Na época, meus pais faziam condução — e, por algum tempo, a condução era basicamente eu e ele. Então nós íamos e voltávamos da escola juntos, todos os dias, por muitos anos. Quase sempre, em silêncio. Às vezes, ele implicava comigo; às vezes, eu implicava com ele. Na escola mesmo, a gente quase não se falava. Ele era de um grupo. Eu, de outro. Ainda assim, no fim do dia, quando meu pai se atrasava, ficávamos os dois juntos esperando. Quando um menino da outra sala tentou me bater, foi ele que me defendeu. Quando ele não ia, o silêncio no carro parecia maior, e eu entrava na escola sentindo que alguma coisa estava faltando.
Talvez porque fôssemos, os dois, crianças um pouco tímidas, um pouco deslocadas, um pouco fora do eixo. Crianças que estão sempre com uma sutil nota de desconforto no olhar. Ou talvez a nossa relação silenciosa tenha se construído sobre a experiência de ver o mundo pela primeira vez do mesmo ângulo. Com muitas diferenças, é claro, mas indo e voltando juntos. Eu encarando a paisagem do lado direito, ele encarando a do lado esquerdo. Ouvindo as mesmas músicas no rádio, eventualmente reclamando dos mesmos professores. Tentando se encaixar em algum lugar, tentando pertencer de alguma forma.
Depois, no ensino médio, acabamos indo para outro colégio — e, aí sim, passamos a estar no mesmo grupo de amigos. Fiquei amiga da namorada dele, fui a sociais na casa dele, trocamos indicações de músicas e comentários sobre que faculdade fazer. E o resto — como diz a Louise Glück — parece ser mesmo memória. Agora, aqui, aos 32, escrevendo sobre infância, abandono, violência, tenho, cada vez mais, a sensação de que nós realmente olhamos o mundo só uma vez. O que vem depois é um desdobramento daquele primeiro olhar. Uma tentativa de confirmar, ou não, entendimentos que foram construídos lá atrás.
Mesmo antes de receber a notícia da morte dele, essa frase já andava reverberando em mim. O último conto que escrevi acontecia em uma casa de dois andares — e a casa que me veio à mente foi a de uma amiga de infância, onde passei vários dias jogando videogame ou mergulhando na piscina. Não pensei em nenhuma casa que conheci já na vida adulta, pensei nessa, resgatada de um longínquo 2003. Frequentemente, os cenários que me vêm à cabeça são cenários de infância. O pátio do Bahiense, as ruas do condomínio de uma amiga, o corredor de um hotel onde ficamos hospedados em uma viagem com a escola. Também é comum que eu estranhe a ideia de ter 32 anos, pois quando era criança eu imaginava que pessoas com 30 e poucos fossem adultos que já sabem o que estão fazendo. Eu continuo sem saber. Entre percursos, idas e vindas, a verdade é que eu me sinto pouco adulta — e me pergunto o quanto da minha visão de mundo de 32 anos não foi construída sobre a visão de mundo da Maíra de 13.
Não sei. Mas sinto que perder alguém com quem a gente compartilhou a infância faz a gente sentir que perdeu um pouco da própria infância também. Porque agora ver as fotos daquele dia de anos atrás sempre vai incluir um nó na garganta, uma tristeza infiltrada na nostalgia. Ainda que a nostalgia, por si só, já seja um pouco triste. Olhando as fotos da época da escola, fico pensando em tudo o que a gente ainda desejava. Tudo o que a gente imaginou. Muitas dessas pessoas eu nem sei por onde andam. Algumas eu nem quero saber. Não faço ideia se alguém ali casou, teve filhos, foi morar em outro país, se alguém foi preso, virou político, traficante, milionário. Mas, sempre que vejo as fotos, fico pensando no que eles imaginavam que seria a vida — e se sentem que a realidade fez jus a essa expectativa.
Em uma série que vi esses dias, o personagem relembra a adolescência e diz: that's not how my life was supposed to be. A vida adulta também não é o que eu esperava. Eu não me tornei a adulta que eu quis me tornar. E, muitas vezes, preciso lidar com a sensação de ter caído em uma armadilha. Não sei qual, não sei se tem saída. Mas isso talvez explique a tristeza e a saudade que sinto vendo fotos antigas. Hoje, nessa manhã chuvosa de quarta-feira, fico pensando que eu gostaria de voltar ao banco traseiro do carro dos meus pais, com o Pedro sentado ao meu lado, cada um olhando o seu recorte da paisagem, enquanto alguma música dos anos 2000 toca no rádio e a gente imagina uma outra vida possível — que não essa.
Oi!
Cheguei nesse texto aqui por alguém no twitter e amei.
Peguei a missão de descobrir a autoria da arte e o caminho que encontrei foi esse, acho que é o site da artista mesmo.
https://carnetimaginaire.tumblr.com/post/11096410640/el-pajaro-contemplativo-mano-collage-and
Sinto muito pelo amigo da infância. É um dos medos que tenho, perder amigos...
Seguirei te lendo, me inscrevi.
Obrigada.
Há algumas semanas uma amiga da escola, que conheci aos 12, cometeu suicídio. E mesmo nossa convivência tendo se tornado tão escassa nos últimos anos, eu senti um vazio, uma ponta solta tão incômoda no fio da minha vida... E eu não sabia como explicar nem tatear esse incômodo. Seu texto me ajudou.