#8 – Já não me sinto em casa neste mundo
Não tenho saído muito de casa. Por diversas questões, que vão da saúde física à mental, passando por uma cachorra com ansiedade de separação e um emprego em home office que me permite passar a semana toda no conforto do meu quarto. Até sou tomada pela saudade de um lugar específico vez ou outra, mas só de pensar no trabalho que é colocar uma roupa, chamar um uber, ouvir a Alice latindo desesperadamente enquanto entro no elevador, lidar com gente sem noção na rua, ficar chocada com o preço das coisas, sentir cansaço, sentir dor na coluna, sentir que o mundo parece ter ficado muito mais barulhento depois da pandemia, só de pensar nisso tudo, percebo que prefiro mesmo ficar em casa.
Minha mãe, por outro lado, sai pra trabalhar todos os dias e sempre volta com notícias do mundo exterior. Abriu um mercadinho no prédio. Colocaram um toldo sobre o parquinho. O vizinho foi preso. Demitiram o gerente da padaria. Lembra daqueles restaurantes que ficavam naquele shopping? Fecharam. Às vezes, tenho a impressão de que vou recebendo atualizações de um mundo que se transforma sem a minha presença. Ela me conta, descreve as cenas, filma os lugares e me manda pelo WhatsApp. E eu, reclusa, vou guardando esses testemunhos de um mundo que aos poucos deixa de ser o que eu conheço. Quando for ao shopping, já vou saber que o Pizza Hut fechou, ela me disse. Talvez não me surpreenda quando for conhecer o mercadinho do prédio, ela já me mostrou o vídeo.
Ainda assim, penso constantemente no estranhamento que é sair e dar de cara com lugares mudados, novas instalações, tapumes cobrindo antigos restaurantes onde eu já comemorei aniversários, celebrei encontros, fui a eventos. A cidade se transforma todos os dias. Basta duas semanas sem passar por uma rua e você pode dar de cara com um prédio novo. Ou acabar decepcionada diante das portas fechadas de uma livraria aonde costumava ir. Obras acontecem, mudam as configurações das ruas, novos empreendimentos nascem e morrem com uma rapidez assombrosa. O abandono político também cobra o seu preço. Vemos construções ruindo, antigas academias cobertas de mato e pichações variadas, portas e janelas depredadas. Algumas viram grandes elefantes brancos, que aprendemos a incorporar à paisagem. Outras, de repente, aparecem repaginadas como mais uma Assembleia de Deus ou Igreja Universal. Essas mutações urbanas devem chocar menos quem está o tempo todo circulando pelas ruas, acompanhando a deterioração de certas construções enquanto outras são levantadas. É tipo conviver com alguém que está engordando ou emagrecendo. O olhar viciado não permite que a gente perceba.
Mas, nas minhas saídas escassas, o meu olhar se torna o oposto do viciado: se torna um olhar quase estrangeiro. Me sinto estrangeira no meu próprio bairro, no meu próprio condomínio, no meu próprio prédio. Uma turista descobrindo novidades ou ruínas, acompanhando — seja pessoalmente ou pelo testemunho alheio — as transformações de um mundo que parece rodar em um ritmo bem mais rápido que o meu. Aliás, não preciso nem ir tão longe pra presenciar as mutações diárias. Tenho visto isso na minha própria casa, que, em dois anos de pandemia, devido à falta de dinheiro pra dar conta de manutenções necessárias, foi se tornando outra casa. O chão lascado, a parede manchada, o fogão enferrujado. Até mesmo as plantas que, negligenciadas, vão ficando decrépitas. Vão se tornando restos delas mesmas.
O tempo é mesmo impiedoso. Mas parece ainda mais quando a gente assiste de camarote. Quando a gente não participa dos deslocamentos diários, quando a gente permanece imóvel observando o movimento do mundo — sem participar dele. E acompanhamos, de mãos atadas, o estranhamento crescente. A desconexão crescente. Já não me sinto em casa neste mundo, sempre achei bonito o título desse filme. Eu, aquariana, alienígena, nunca me senti em casa neste mundo. Mas, a cada dia que passa, me sinto um pouco menos.
Li, assisti, encontrei
✷ Assisti faz tempo, mas hoje acordei lembrando do Encontros no fim do mundo, do Herzog. Um filme que me faz pensar muito em isolamentos e (des)conexões. A cena do pinguim desorientado me marcou bastante.
✷ Saiu álbum novo da Florence + The machine, uma das minhas bandas favoritas, e do Harry Styles, que ando gostando muito recentemente. Vale assistir também esse clipe da Florence, que, segundo ela, teve como inspiração O corpo dela e outras farras, livro de contos da Carmen Maria Machado.
✷ Terminei de ler Bobagens imperdíveis para ler numa manhã de sábado, da Aline Valek. O livro é uma reunião de textos curtos (que já foram parte de uma newsletter, aliás), com reflexões sobre a vida e o mundo contemporâneo. Me deu vontade de, um dia, juntar os textos da Café com caos em um livro também, quem sabe. Por enquanto: fica a dica de leitura, realmente ótimo pra ler num sábado de manhã, tomando um cafezinho.
✷ Um perfil no Twitter com o objetivo de divulgar mulheres artistas, de diferentes lugares, diferentes épocas.
Até a próxima!
Maíra
Esse capítulo (não sei como chamar) foi reconfortante até. Sou adolescente, minha mãe não me deixa sair de casa e na maioria das vezes eu não faço questão. Durante tanto tempo presa em casa, conversando com as mesmas pessoas, vendo os mesmos rostos, quando eu botei o pé na rua decidi andar o mais longe que pude, que me sentiria segura de ir. Foi doido perceber que eu não conhecia meu próprio bairro, as casas, a minha antiga escola, por mais que não tenham mudado tanto. Foi como se eu tivesse inventado um mundo só meu dentro da minha casa. Estranhei ver pessoas, sentir cheiros, andar naquelas ruas, tudo parecia "novo" pra mim. Não tive coragem nem de falar com pessoas que já conheci.