[Entre dentes] #02 – Por que acordo com os dentes amolecidos
Ou: uma enseada de delírios noturnos.
[A Entre dentes é uma seção da newsletter Café com caos reservada à publicação mensal de textos insólitos e esquisitinhos. Para acessar o arquivo desta seção específica e ler o que já foi publicado até agora, clique aqui. Você também pode saber mais sobre os meus livros publicados e colaborações com revistas/antologias/etc. clicando aqui. Semana que vem retomamos as edições normais da Café com caos.]
1.
Sonho que encontro vários gatos recém-nascidos na porta de casa. Decido cuidar deles, protegê-los, até que possam ser adotados. São minúsculos e não têm pelo algum. À noite, me distraio e coloco os filhotes na boca, pensando que são comida. Só percebo o que aconteceu quando já estou mastigando o bolo de carne com pequenos pedaços de ossos. Cuspo, desesperada, mas, por mais que eu tente, os restos pegajosos se recusam a sair dos cantos da minha gengiva.
2.
Sonho que vejo um senhor andando pela rua com um coelho de estimação e, não sei por que, decido roubar o coelho dele. O bicho é muito pequeno e todo branquinho, mas percebo que custa caro cuidar de um coelho, então procuro a casa de seu dono para ir devolvê-lo. Quando chego lá, o homem enlouqueceu. Está de malas feitas, diz que vai embora do país pois não aguenta mais tanto sofrimento. Ele conta que várias vezes achou que tinha encontrado o coelho, mas logo percebia que aquele era o coelho errado, um coelho impostor, nunca o verdadeiro. Me sentindo culpada, digo a ele que eu estou com o coelho certo e mostro o animal, pensando que ele ficará feliz, emocionado, choroso. Pelo contrário: o homem olha o coelho verdadeiro com desdém e diz “também não é esse”. Eu me revolto: “como assim não é esse? Olhe direito o coelho”. Ele olha de novo e repete: “tenho certeza que não é ele”.
3.
Sonho que passo o dia inteiro sendo acompanhada por uma pessoa que não tem os globos oculares. Não sei quem ela é, ou por que me segue, faço muitas perguntas, mas ela não diz nada, apenas me olha com seus olhos de buraco negro. Ao fim do dia, ela me leva a uma casa desconhecida e sinto a crueldade nascendo pontiaguda atrás da minha orelha esquerda. Paro de fazer perguntas.
4.
Sonho que você me come enquanto eu enfio a cabeça no forno e ligo o gás. Sonho que você me come enquanto eu como o bolo mofado do meu aniversário de doze anos de idade que ninguém comeu. Sonho que você me come enquanto eu equilibro um castelo de cartas na cabeça. Sonho que você me come enquanto eu sonho que você me come. Sonho que você me come enquanto eu mastigo minhas próprias mãos e o sangue escorre pelo peito abaixo. Sonho que você me come enquanto eu faço uma autópsia e pego com cuidado os órgãos gelatinosos de um animal pequeno demais para se defender.
5.
Sonho que tento abraçar um cachorro, mas ele foge de mim repetidas vezes. Observo suas patas e focinho longos, seu corpo magro. Quero fazer carinho nele, me debruçar sobre os pelos acinzentados. Ele não deixa. Só quando desisto e sento no chão para chorar é que ele vem. Começa a lamber minhas lágrimas, abre uma boca imensa, mastiga lentamente meus olhos até não sobrar nada, até o meu rosto inteiro se desfazer nos seus dentes. Sou tomada por um grande alívio conforme ele faz de mim carne outra vez. Sei que o nome disso pode ser amor.
6.
Sonho que uma mulher ao meu lado saliva exageradamente. Mesmo com os ruídos do ambiente, o que mais escuto é o barulho de sua saliva sendo empurrada de um lado para o outro com a língua, sendo sugada para não cair da boca. As horas passam e a fila não anda. Me pergunto o que estou esperando, que fila é essa. Não sei. Só sei que preciso estar aqui, preciso esperar, é importante. Ainda que a salivação da mulher se torne cada vez mais audível, cada vez mais forte. Olho para o lado, prestes a dizer “senhora, assim não é possível”, mas não vejo ninguém. Entendo que a mulher sou eu. Percebo que estou encharcada.
7.
Sonho que adoto uma lesma e carrego seu pequeno corpo gosmento para todos os cômodos da casa. Dou comida a ela, dou banho, deixo-a posicionada no sofá para que veja televisão. A lesma cresce rápido, logo está do tamanho de uma onça. Seus rastros viscosos se espalham por toda a casa, não consigo mais encostar em nada sem sentir uma baba leitosa tomando minhas mãos. Um dia, a lesma me convida para entrar nela, e eu aceito. Lá dentro, há um ruído de mar constante e muitos objetos amontoados. Encontro meu videogame antigo, o diário que mantinha aos 14 anos. Abro em uma página aleatória e leio: “uma pessoa infeccionada deve imediatamente ser tirada de circulação”.
8.
Sonho que é domingo à noite, você não atende a campainha, eu não tenho para onde ir. Há um silêncio abafando a cidade, como se todos estivessem cochichando suas fomes, vigiando brechas, suando sob grossas camadas de tecido. Quando você aparece, estou sozinha no meio da rua, mas já é tarde. Uma multidão de cavalos pretos me cerca, me esquadrinha com o focinho úmido. Sinto o impacto nos ossos conforme eles começam a agitar as patas, sinto o medo de ser derrubada, o gelado das ferraduras marcando a pele quando já não posso levantar do chão. É lento um pisoteamento deste porte. E estranhamente sincronizado. Quero gritar, mas minha garganta está apertada e não há nada que vença a sinfonia de relinchos se avolumando pela noite.
9.
Sonho que minha mãe visita minha casa, mas, quando ofereço um lanche a ela, me dou conta de que todas as comidas estão podres. Abro a geladeira e os armários, tudo cheira mal, algumas larvas brotam de superfícies esverdeadas pelo mofo. Volto à sala para dizer que não há comida e noto que ela fez uma cirurgia. Seu braço direito foi amputado e recosturado no meio da testa. Ali não há uso possível para ele, então sua função se torna apenas decorativa. Pergunto a ela sobre a operação, e ela dá de ombros: é uma forma de sujar menos as mãos.
10.
Sonho que uma barba espessa cresce no meu rosto. Pego uma pinça e começo a arrancar fio por fio, mas, conforme vou puxando os pelos, vejo que na verdade não são pelos e sim enormes pregos enfiados na minha pele. Largo imediatamente a pinça: tenho medo que, tirando os pregos, caia também o rosto.
já sonhei algo parecido com seu sonho dos pregos. ao invés deles, eram pseudópodes com a ponta em forma de calo que eu cortava com uma navalha e deles saia uma gosma com sementes de girassóis. o buraco que sobrava não fechava e eu conseguia passar a mão por dentro da mandíbula.
agonizante de dar nojo e visceral!! ameiiii!