#11 – Uma brecha no endurecimento
Não sei quando aconteceu essa virada de chave. A gente nunca sabe bem em que momento acontece. Em um instante, eu estava ali, concentrada, prestando atenção no que ele dizia. Em outro, não estava mais. Já comecei a reparar em como a voz dele é gostosa de ouvir, ou como é charmosa a forma como ele pronuncia certas palavras. Comecei a ver qualquer coisa de instigante no rosto, na postura, nas mãos, comecei a nutrir uma curiosidade pinicante sobre o signo, o perfume, a história. Talvez tenha sido um processo contínuo, eu só não reparei.
Como se fosse uma boneca russa, o meu interesse foi se desdobrando, foi se abrindo, até eu chegar a responder qualquer frase vazia que fosse coerente com o assunto enquanto, na minha cabeça, a imagem era outra. Na vida real, conversas amigáveis e civilizadas; na minha cabeça, mãos e bocas e pescoços e línguas.
Foi um susto. Pra alguém como eu, que anda há muitos meses se sentindo árida, cimentada, endurecida, seca, pra alguém que nos últimos meses pensou estar morta com frequência, de repente descobrir essa pulsão escondida em um contato comum foi um susto. Um pouco como achar uma miragem no deserto. Ou uma brecha. Desejar ele foi uma brecha. Uma brecha no endurecimento.
Ele não chegou a saber disso. Nem vai saber. O território das nossas conversas é outro, parece não existir espaço pra alargar o contato, não a esse ponto. Vamos seguir com as nossas conversas impermeáveis. Amigáveis & civilizadas. As mãos e bocas e pescoços e línguas não vão acontecer no plano real. Pelo contrário, vão — muito provavelmente — envelhecer e perder a força aos poucos, dentro da minha cabeça. Com alguma esperança, vou saber disfarçar. Ele vai encarar o meu rosto e não vai ser capaz de identificar nem sequer uma gota de desejo.
Mas, ainda assim, ainda que ele não saiba, eu vou saber. E saber que eu fui capaz de desejar alguém, aqui, agora, depois de todo o endurecimento dos dias, depois de atravessar tantas mortes, saber que eu fui capaz de hospedar essa voracidade por alguém (mesmo que fosse a pessoa errada) talvez faça toda a diferença. Uma abertura. Desejar ele foi uma abertura. De alguma forma, sem ele sequer ficar sabendo, o meu desejo por ele foi capaz de abrir um cadeado enferrujado. Como se, num solo infértil, morto, ressecado, de repente se descobrisse uma minúscula planta começando a germinar.
É quase um alívio. Me importa pouco que ele esteja a quilômetros de distância, me importa pouco a impossibilidade. Isso não é sobre ele. Mesmo que as impossibilidades se dissolvessem e esse desejo se concretizasse, ainda não seria (só) sobre ele. Ou sobre qualquer coisa entre nós dois. Sim, é um alívio. No meio do endurecimento, ser pega de surpresa e pensar: “então ainda se pode isso. Pelo menos ainda se pode isso. Ainda é possível desejar”. E perceber que o desejo também é um bicho feroz, um bicho que abre caminhos. Um bicho capaz de nos acordar de manhã, impulsionar gestos, causar movimentações. Combater apatias.
No Jurassic Park, aquele primeiro, o Ian diz uma frase que eu sempre achei bonita: life finds a way. A vida encontra um caminho. O desejo também. E, onde não tem caminho, ele cria, inventa, improvisa, porque o desejo não é de ficar sentado esperando outras circunstâncias. Assim como a força que todos os dias pesa o meu peito, essa também tem o seu poder. É igualmente avassaladora. Embora ela esteja me carregando pra um lugar bem diferente (que eu ainda não sei qual é, mas pretendo descobrir).
Hoje não é domingo, mas esse texto veio de um lugar tão pessoal, tão preciso-escrever-isso que eu achei melhor enviar logo. Uma forma de tentar me libertar do texto e do que ele representa. Como vocês sabem, nessa newsletter trabalhamos com instabilidades. Mas a próxima volta a ser num domingo, como sempre.
Li, assisti, encontrei
✷ Incrível essa ideia da Giovana Madalosso de reunir escritoras em várias cidades do Brasil pra uma foto histórica.
✷ 100% apaixonada por essa e essa pessoa fotógrafa, as duas criam imagens enigmáticas e obscuras que têm me servido como uma puta inspiração pra escrever.
✷ Ando com essa performance absurda da Natasha Felix ressoando na minha cabeça a semana toda.
“sempre preferi aqueles cheios de bichos
escândalos baldeando de orelha a orelha
quem quebra copos
quem sabe o erro
toma para si o erro
segura escova gargareja
não cospe”
Sentindo muitos sentimentos aqui, Maíra. Achei bonito isso que você disse do desejo como brecha, como algo que vem causando onde antes só havia quase certeza de que ali, nada furaria! Quando aconteceu algo semelhante por aqui, até doeu um pouco, rs. Esse misto entre as vontades e o que é mesmo possível se desdobrar objetivamente, uau... Várias coisas para elaborar, e você o fez lindamente :)