#17 – Novas formas de mexer a língua
Decidi aprender coreano. Assim, meio do nada, influenciada por uma série que estou assistindo. Desde o começo da pandemia, quando resolvi aprender alemão sozinha como se não estivesse com o emocional completamente atropelado, parece que o meu novo coping mechanism se tornou: estudar idiomas. Entre a dificuldade de sair da cama e a constante necessidade de encher a cara de Netflix, nessas horas me pego obcecada por um idioma novo, como se ele fosse um enigma que preciso desvendar — como se ali se escondesse, enfim, a chave que eu procuro há tempos. A Grande Resposta.
Acredito que isso tenha a ver com a sensação de estar entrando em um novo espaço, com novas regras, novas lógicas, novas percepções. Aprender um idioma é como aprender uma nova forma de entender o mundo. As línguas dizem muito sobre como diferentes culturas têm diferentes prioridades e fazem diferentes recortes da realidade. É aquela velha história de que os esquimós têm mais de 50 palavras pra neve. Porque é necessário nomear a neve fina, a densa, a neve que acabou de começar, os diversos flocos, entre outros aspectos da neve que eu — aqui nos 35 °C brasileiros — nem sou capaz de imaginar.
No coreano, por exemplo, há mais de um nome pra arroz. Enquanto uma palavra se refere ao arroz cru, outra se refere ao arroz cozido; outra, ao frito. Também já aprendi que lá existem sete níveis de fala, cada um com o seu próprio conjunto de terminações verbais usadas pra indicar o nível de formalidade daquela situação. Fiquei pensando na relação entre essa clara demonstração de apreço à formalidade e o nosso querido português brasileiro, em que — tirando situações burocráticas e específicas — o máximo de formalidade que temos no dia a dia é chamar de “Dona Fulana” e “Seu Fulano”.
Embora possam parecer apenas um conjunto de regras e um vocabulário, as línguas têm raízes profundas. Dizem respeito à forma como nos relacionamos uns com os outros e com a realidade, demonstram aquilo que mais valorizamos, mais presenciamos, mais vivenciamos e, por consequência, sentimos a necessidade de nomear. Nossas necessidades, nossas lógicas, nossa forma de enxergar a vida, tudo isso atravessa o idioma em sua história e estrutura.
Junto ao meu amor pela literatura, foi também esse fascínio pela língua que me fez entrar na faculdade de Letras. Muita coisa que aprendi acabou sendo desgastada pelo tempo, mas ainda lembro que, no latim clássico, a frase pode ser colocada em qualquer ordem, porque a função de cada palavra se inscreve nela mesma. É a terminação que vai dizer o que é verbo, o que é sujeito, objeto direto, etc. Algo semelhante acontece no alemão, e, tanto estudando alemão quanto latim, sempre me intrigou essa ideia de que uma frase pode ser organizada em várias ordens diferentes e, ainda assim, fazer o mesmo sentido. Também me pergunto que impacto tem nas interações pessoais o fato de você ter que esperar a pessoa terminar de falar para ver, afinal, qual vai ser o verbo daquela frase. Em línguas como essas, é necessário ver o todo pra entender.
Dos anos de graduação, lembro também de uma professora de Linguística contando que a lógica portuguesa é um tanto diferente da brasileira (o que, pelo que parece, deu origem a todas as piadas brasileiras ligando portugueses à burrice). Entre várias situações, lembro dela contando que uma vez pegou um ônibus e perguntou ao motorista se aquele ônibus passava em um lugar X. O motorista disse que sim, passava. Ela subiu e sentou. Mas, quando chegou a hora de descer no tal lugar X, o motorista não parou. Conforme ela foi questionar, ele respondeu: ué, eu disse que passava lá, não que parava. Parece absurdo pra gente, mas pra eles faz sentido. Segundo ela, os portugueses são bem mais literais e, se você perguntar a algum desconhecido “você sabe onde é o lugar X?”, a pessoa é capaz de responder “sei” e ir embora. Afinal, você perguntou se ela sabia, não se ela te informaria.
Se com o mesmo idioma temos esses desencaixes de percepção e entendimento, o que esperar das diferenças entre, sei lá, português brasileiro e coreano? Na aula de ontem, achei bonito que um professor disse: não entrem nessa de tentar fazer paralelos entre os sons do português e do coreano pra decorar com mais facilidade. Talvez facilite, mas você vai decorar uma pronúncia errada, porque o alfabeto romano não dá conta dos sons que o coreano pede. Pra aprender coreano, preciso, então, desapegar do meu alfabeto romano, dos sons que a minha boca está acostumada a reproduzir. Preciso exercitar novos movimentos, repensar a forma como o ar sai da garganta, como a língua se posiciona dentro da boca. Pra aprender, preciso abandonar o que já sabia. Destreinar a língua, pedir a ela que esqueça os seus hábitos já viciados há anos. Que esqueça os ritmos e as sonoridades com que estava acostumada.
Da mesma forma, preciso me despir das minhas percepções brasileiras pra começar a entender a lógica de outras culturas e como essa lógica se aplica àquele idioma. Aprender novas línguas exige algo como um outrar-se, um sair de si, sair do próprio lugar e daquilo que já consideramos estabelecido. Um efeito semelhante ao das viagens, mas com menos aventuras, talvez.
Quando estou nos meus piores dias, gosto de pensar: se eu morasse em outro lugar, estaria com esses problemas? Quais seriam as minhas questões na Tailândia? O que estaria me doendo agora se eu fosse, sei lá, russa? É acalentador, de alguma forma, pensar que as dores seriam outras. Que, imersa em um lugar que funciona de acordo com uma lógica diferente, talvez eu também pudesse ser outra. Por ora, quero acreditar que o coreano talvez me dê a chance de encontrar alguma coisa que o português ainda não me permitiu encontrar.
Li, assisti, encontrei
✷ Uma advogada extraordinária: a série gostosinha que despertou a minha obsessão coreana.
✷ “Cresci ouvindo que gente como eu não podia fazer arte.”
✷ Por que é tão confortável rever os mesmos filmes e séries em vez de procurar filmes e séries novos? Esse texto (em inglês) fala um pouco sobre a comfort culture.
A barriga da cabra
Saiu na última edição da Revista Alcateia o meu conto “A barriga da cabra”, um conto esquisitinho sobre meninas manchadas, partos, metamorfoses e reconhecimentos. Além do meu, há vários outros contos de autores incríveis, além de poemas e ilustrações. Pra ler, é só baixar a revista no site deles.
Uma das coisas que mais me pega desde que comecei a aprender japonês é o fato de que há muito de mim que não dou conta de expressar – sequer de propriamente pensar – ainda em japonês. Eu não sei ser anticapitalista em japonês, sei apenas perguntar o preço e escolher meu produto. Conforme aprendo esse novo idioma que ainda me soa tão alienígena às vezes, é como se novos pedaços de mundo fossem se desbloqueando pra mim. Imagino se tua experiência com o alemão e, agora, com o coreano, passaram ou passam por corredores semelhantes ^_^
Que texto bom de ler!
Me deu o que pensar aqui ☺️🤍