#18 – O medo comeu o meu nome
Quando eu era criança, meu maior medo eram os barulhos altos e ritmados. Na minha cabeça, aquilo era indício da chegada de algo gigante que se aproximava. Embora eu não soubesse o quê ou quando chegaria ou quão perigoso ele era. Mais do que a angústia pelo potencial perigo, no entanto, o que esse medo coloca em evidência é o medo do desconhecido. Se fosse possível ver o que é tão gigante, se fosse possível ver o rosto do gigante, talvez não fosse tão terrível. É o desconhecido que mata, o não ter ideia do que está prestes a chegar. Não por acaso, meu outro grande medo era o escuro. Hoje, tantos anos depois, sigo, no fundo, carregando um medo que se assemelha a esses dois: o medo de não saber. Não poder controlar, antecipar, ter que andar às cegas pelas ruas da vida.
Esses dias, andei lembrando de uma série de livros que eu amava na infância, chamada Quem tem medo. Cada exemplar era sobre um medo diferente: Quem tem medo de monstro, Quem tem medo de dentista, Quem tem medo de mar. Não sei dizer qual era o meu favorito, porque todos me pareciam medos igualmente válidos. Embora o escuro e os barulhos altos fossem soberanos, eu, desde cedo, tive uma coleção variada de medos pra chamar de meus. Filha única de pais um tanto protetores, o mundo sempre me pareceu um lugar assombroso, onde os mais diversos perigos poderiam emergir dos mais inofensivos lugares.
Agora me parece engraçado pensar que, aqui, em 2022, eu estou editando uma revista focada na literatura de horror, escrevendo contos que flertam com o gênero e amando autoras cujos livros mergulham nos medos mais terríveis. Ainda assim, minha relação com o medo segue sendo complexa. No ano retrasado, assistindo BBB, lembro de ouvir a Viih Tube dizer uma frase que me marcou: a minha história lá fora é uma história de medo. A minha também. E muitas vezes penso em fazer o que ela fez: um movimento extremo, uma medida drástica, um se colocar diante daquilo que mais nos aterroriza (seja entrando no BBB, se mudando pra um país estrangeiro ou, sei lá, fazendo uma trilha desafiadora no meio do nada).
Meio-que-parafraseando João Cabral de Melo Neto: o medo comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. Se a gente não fica atenta, ele engole potenciais e histórias, rói oportunidades, encontros. Ele é capaz até de comer o tempo. Muitas vezes, de forma imperceptível, discreta, crescendo aqui e ali, ganhando força, tomando espaços. O medo cresce, rápido e sorrateiro, se a gente se distrai e deixa ele crescer. De repente, quando dou por mim, ele levou vários anos da minha vida, roubou metade de quem eu era, se agigantou de tal forma que já não tenho condições de me levantar contra ele em nenhuma luta.
Tenho a impressão, inclusive, de que o medo se alimenta dele mesmo. Quanto mais deixamos que ele fale, mais sua voz ganha força. Mais difícil se torna escutar qualquer outra coisa. A Samanta Schweblin disse em alguma entrevista que se interessa por narrativas de horror porque o medo é uma emoção que exige atenção absoluta (o que parece cada vez mais raro em tempos de atenção compartimentada). Isso também deve explicar por que ele se sobrepõe a outras tantas emoções: onde é alimentado, o medo reina soberano, demanda todas as atenções, não deixa espaço para mais nada.
É claro que essa demanda não é por acaso. O medo serve, no fim das contas, pra nos alertar dos perigos reais, fazer com que a gente desvie dos buracos, ande com cautela sobre chãos incertos. O que o medo nos diz tem valor e deve ser escutado. Cabe a nós informá-lo — como diz a Liz Gilbert em Grande Magia — que, sim, ele pode ir com a gente, sentar no banco do passageiro, dar as suas opiniões sobre os percursos… Mas não é função dele dirigir o carro.
Li, assisti, encontrei
✷ Falando em medos, essa newsletter da Cláudia Fusco sobre covardias criativas é ótima. Eu também sempre tive um carinho pelos medrosos da ficção (tanto quanto os corajosos e seus atos heróicos costumam me dar preguiça).
✷ Antes e depois dos quartos de pessoas com depressão.
✷ “Preciso continuar escrevendo mesmo que continuem me vaiando. O resto é besteira.”
✷ Quem me segue no Instagram já deve ter visto que estou mudando a estante de livros e a escrivaninha de lugar (aliás, nesse processo precisei me desfazer de vários livros, que coloquei à venda lá no destaque “bazar” do meu perfil). Enfim, uma das minhas terapias do momento é ver fotos de desk setups inspiradores e garimpar ideias pra decoração da minha futura mesa. Criei até uma pasta no Pinterest pra salvar referências.
Uma comunidade literária?
E, por falar em Instagram, cometei nos stories outro dia que sentia falta de uma comunidade, um grupo reunido a partir de um interesse ou uma paixão em comum. Daí surgiu a ideia de uma comunidade literária, pra falar de autoras mulheres. Pensei que seria interessante, pra ter um recorte mais definido, escolher apenas autoras mulheres contemporâneas (que dialogam muito com as nossas vivências). Também seria interessante manter o leque geográfico aberto, assim teríamos chance de ler brasileiras, latino-americanas, asiátias, africanas, e sair do eixo norte-americano e europeu, que são os que sempre ficam em evidência.
Ainda não sei exatamente como seria o formato, o funcionamento, etc., mas, se você tiver interesse, já aproveita pra me contar. Assim eu posso te avisar se esse projeto sair mesmo do papel. :)
Tenho interesse em uma comunidade literária para falar de autoras mulheres. Inclusive, é um movimento em direção oposta ao medo.
Escritoras mulheres portuguesas podem ser incluídas nesse grupo? Se for o caso, já quero!!!