#20 – Ode aos caóticos
[Para ler ouvindo: Purgatory blues – Juliette and the Licks]
Se tem um tipo de personagem pelo qual eu tenho um carinho gratuito, é o personagem caótico. Ele aparece em muitas narrativas. Sua vida é desorganizada, talvez ele perca prazos com frequência ou tenha dificuldade de manter relacionamentos. Levar uma rotina saudável também não é o forte dele, pelo contrário, esse personagem está sempre mergulhado em algum tipo de excesso. E também em algum tipo de falta. Muitas vezes, é visto como um fracassado, alguém que deu errado na vida, que não seguiu o caminho esperado. As pessoas ao redor costumam achar ele cansativo — e, nas narrativas norte-americanas, sempre rola um momento em que alguém grita um sonoro “get your shit together!” na cara dele. Também é comum que, em algum momento da história, descubram que todo esse caos deriva de algum trauma não elaborado.
Recentemente, vendo Yellowjackets, adorei a Natalie por isso: me senti representada. Sem dar grandes spoilers, Natalie saiu de uma clínica de reabilitação e reencontrou amigas do ensino médio com quem ela compartilhou um acontecimento importante no passado. As amigas se casaram, tiveram filhos, parecem viver uma vida organizada e bem resolvida. Natalie — interpretada pela rainha da energia caótica: Juliette Lewis — bebe demais, está sempre descabelada e passou a morar em um flat furreca enquanto investiga obsessivamente um mistério relacionado ao ex-namorado.
É claro que, conforme a primeira temporada vai se desenrolando, a gente vai vendo que as outras personagens, que pareciam ter vidas tão organizadas e bem resolvidas, também não são tão resolvidas assim. A diferença é que elas aprenderam a disfarçar melhor, engolir o caos, camuflar o trauma. Isso também deve explicar por que, entre tantos personagens perturbados, ainda assim eu sou inclinada a acolher o caótico. Porque ele não aprendeu a disfarçar. Enquanto Shauna banca a dona de casa realizada e Taissa concorre a um cargo político (embora nenhuma das duas esteja de fato feliz), Natalie nem sequer tenta parecer que tem tudo sob controle. O personagem caótico é, em suma, alguém que sabe que perdeu o controle da própria vida e não faz questão de esconder.
Quando vi Yellowjackets, lembro de ter comentado com um amigo: amei a representatividade da mulher caótica. Porque eu ando cansada de mulheres com a vida bem resolvida. Sigo muitas nas redes sociais, que me inspiram por diferentes motivos. Algumas postam looks lindos, outras falam de livros que eu gosto, várias delas têm casas cuja decoração eu admiro e gosto de acompanhar pra ter ideias do que fazer na minha própria casa. Ainda assim, a linha entre a inspiração e a comparação é tênue demais, e de repente eu me vejo pensando: como aquela mulher consegue ler tantos livros incríveis, manter a casa arrumada, ter tempo e disposição e dinheiro pra fazer isso e ainda estar com o cabelo bonito, os looks impecáveis, os gatos bem cuidados, as plantas regadas, os relacionamentos em dia?
Sim, as redes mostram uma fração do todo — e uma fração um tanto conveniente. Mas, como dizia o Pessoa, também os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. Das pessoas que estudaram comigo no ensino médio, tenho a constante sensação de que eu estou no grupo das que deram errado. Frequentemente, vejo seus stories viajando, casando, comemorando sucessos em suas casas perfeitamente decoradas, enquanto eu almoço um resto requentado do delivery que pedi ontem e bebo Coca sem gás em um copo de requeijão. Depois tento fechar a torneira da cozinha que está vazando, passo pelo espelho e lembro que eu devia jogar essa blusa fora porque ela está toda rasgada e manchada de tinta de cabelo, respondo o match deplorável do Tinder com alguma mensagem sem carisma, lembro de regar o resto das plantas amareladas e cabisbaixas que insistem em sobreviver, percebo que há dias não saio pra passear com a cachorra.
Sou uma péssima mãe de pet e seria uma mãe de humano ainda pior. Deixo mensagens sem resposta, plantas sem rega, leio 15 livros ao mesmo tempo e não termino nenhum, minha alimentação é uma piada, não tenho disciplina pra fazer exercício, queimo comidas com frequência, perco documentos, negligencio relacionamentos, sou movida por excessos e minha casa é um grande povoado de gambiarras.
Gosto de me consolar com a ideia de que muitos artistas e escritores também tinham dificuldade de enfrentar a vida prática, cotidiana. Como diz o Harry em Desconstruindo Harry, eu funciono bem na arte, na vida não. Ouvi dizer em algum lugar que Virginia Woolf odiava as exigências da vida doméstica. Não sei se é verdade, nem sei se já foi estudada por alguém essa aparente relação entre a pulsão criativa dos artistas e a dificuldade de manter uma vida estável, mas me parece significativo que pessoas movidas pela ficção (e toda arte é uma forma de ficção) achem tão custoso dar conta das demandas da vida real. Mais uma vez, lembro de Pessoa: “Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal”.
Mas, artistas ou não, acho que gosto dos caóticos também porque eles destoam. São outsiders, estrangeiros, vivem sempre à margem do esperado. Eles são, enfim, os que deram errado. E todo mundo que dá errado coloca em evidência o próprio conceito de dar certo. Muitas vezes, são os caóticos os mais sensatos, que percebem quão adoecidas estão as pessoas que parecem 100% adaptadas a um sistema tenebroso. Ou quão bizarro é esperar que todos sigam um mesmo caminho padrão e medir se são bem-sucedidos a partir disso. Os caóticos são um tanto rebeldes, de certa forma. Se recusam a entrar no molde, a dançar no mesmo ritmo, a obedecer aos horários segundo os quais o resto do mundo funciona. Sua desorganização convida os outros a repensar o que diabos significa uma vida organizada. E quanto custa ter uma.
[Essa edição talvez explique o nome dessa newsletter. Viver no caos tem sido a minha especialidade há 32 anos. O café ajuda.]
Li, assisti, encontrei
✷ Um festival só focado nas narrativas curtas, essa é a proposta do Faísca. A programação saiu e tá incrível.
✷ Pra quem ama cinema e moda, essa perfeição de thread faz uma ótima análise sobre o impacto das escolhas de figurino em diferentes filmes.
✷ Uma pessoa usou o prompt “vaso de cerâmica feito por uma civilização alienígena” no DALL-E e os resultados foram maravilhosos. Como uma grande fã de cerâmicas e de alienígenas, teria vários na minha casa.
✷ “Escrever uma narrativa longa é um exercício de fidelidade.”
Voltei pra dizer que assisti a série - impulsionada pela sua escrita - e adorei! Obrigada pela dica
Caos é gostosim porque ele é de verdade!
Também me sinto esquisitona por "ter dado errado" na lógica que pensava na época do ensino médio. É um exercício constante e insistente me dizer que 'tá tudo bem' ser do meu jeitinho - que é o jeito de tanta gente por aí! Tô curiosa com Yellowjackets, vi a dica num vídeo do Thiago Ora (conhece)?