#21 – O que sobrou de mim
Estranho muito a ideia de estar em 2022. Quase 2023. Estranho mais ainda ver as pessoas ao redor vivendo como se a pandemia não tivesse acontecido, como se a gente já tivesse acabado de digerir o que foi esse trauma coletivo. Com quatro doses de vacina, é claro que o cenário é outro, e aos poucos o mundo volta à normalidade (para o bem e para o mal, porque aquela ilusão de que a sociedade sairia mais consciente da pandemia parece, infelizmente, ter ficado presa em 2020). Ainda assim, são 600 mil mortos. Muitos meses de isolamento e pavor. Mesmo quem não perdeu ninguém foi atravessado pelas perdas ao redor, pelas notícias diárias de novas covas sendo cavadas, pelo tempo trancado em casa, a neurose das compras lavadas, a angústia diante de qualquer aproximação.
Como alguém que lida com um transtorno de ansiedade há um bom tempo, eu me senti atropelada pela pandemia. A compulsão alimentar veio com tudo, engordei mais de 30 quilos em 2 anos, sair de casa se tornou sinônimo de taquicardia, e a habilidade de interagir — arduamente construída — foi atrofiando de tal forma que eu já não sentia saudade de estar com outras pessoas, porque o desconforto superava qualquer satisfação. Lembro que, durante um tempo, eu tentei manter uma espécie de diário, e num dos dias escrevi:
“Às vezes parece que o que sou agora é só o resquício do que fui um dia. Sou um fiapo, um resto, uma sobra. Como se uma ventania muito forte passasse e levasse boa parte do que eu era. O que está aqui foi o que sobrou. Eu sou o que sobrou de mim. Não sei o que fazer com isso.”
Tentar reconstruir quem eu era antes da pandemia seria um trabalho absurdo. Não só no sentido de árduo, grandioso, mas também no sentido de: não fazer sentido. A vida como ela era não volta. As pessoas que nós costumávamos ser também não. Mesmo os planos que a minha versão de 2019 fazia já me parecem distantes, sem cabimento. O que eu gostava, planejava, queria, pensava, o meu estilo de me vestir, os livros que eu lia. Nada disso parece se encaixar na minha versão atual — embora, muitas vezes, eu também não saiba dizer o que exatamente se encaixa na minha versão atual.
Nesse 2022, ando me sentindo a moradora de uma casa em ruínas. E morar numa casa em ruínas tem qualquer coisa de curioso. Marcada pela falta, a casa devastada parece terrível quando comparada à sua versão anterior. Na tinta descascada, um fantasma das paredes perfeitamente pintadas. Nos escombros, um vislumbre da antiga construção imponente. A casa em ruínas é o que sobra, e aquilo que sobra sempre coloca em evidência o que foi levado embora. Por outro lado, tenho percebido que existe nela também um potencial inexplorado. Das ruínas, é possível pensar no fantasma do que ainda não veio, nas construções ainda capazes de se erguer sobre os escombros. Novas paredes que só têm a chance de surgir agora que as antigas foram derrubadas.
Estou tentando dar uma chance ao que sobrou de mim. Pegar esse restinho com as mãos e buscar o que ainda pode ser construído a partir dele. Não tem sido fácil, e boa parte do tempo eu me sinto numa espécie de limbo, presa entre o que já não é mais e o que ainda não começou a ser. Mas talvez seja mesmo esse o espaço daquilo que morre e vira outra coisa. Um espaço confuso, onde a gente se divide entre olhar pra falta com saudade do que não existe mais ou com vontade de construir algo novo.
E não é que somos 500?
Muita gente nova chegou aqui nos últimos dias, o que me deixa bem feliz e também com vontade de falar um “não repara a bagunça”, entre risinhos amarelos, enquanto escondo discretamente várias bagunças. Mas, pré ou pós pandemia, a bagunça faz parte do meu DNA, então é isso.
Agora que somos 500, fiquei pensando que talvez fosse uma boa ideia incluir uma breve apresentação pra quem caiu aqui de paraquedas. Meu nome é Maíra, eu sou carioca, tenho 32 anos, me formei em Letras, fiz um mestrado em Teoria literária, uma pós em Marketing, trabalhei com várias coisas diferentes, mas o meu negócio mesmo é revisão. Hoje em dia, sou revisora e preparadora, além de escritora (embora esse trabalho não pague as minhas contas). Publiquei dois livros de poesia, estou tentando escrever um de contos, edito uma revista chamada Noturna e também faço umas colagens. Lá no Instagram, falo de livros, reclamo da vida e posto meus experimentos criativos.
Espero que você goste desse espaço caótico. 🖤
Um miniconto
Chegou aqui em casa essa semana a antologia da Ipê Amarelo onde saiu um conto meu. O nome do livro é O vendedor de sofás, e ele reune minicontos de diferentes autores. Esse foi o meu, que até já compartilhei aqui tempos atrás:
O novo normal como muita gente ficava repetindo nao tem nada a ver com uma nova ordem em que todos vivem com novos valores.
O novo normal é se ver fora do eu de 2019 como vc referiu. Dificil se reencaixar, como se fosse uma imagem desfocada tentando centrar num so eu.
Gosto bastante da sua newsletter. Continuamos por aqui te lendo.
Beijos!
Marcelo
Suas palavras encontraram eco aqui, Maíra. Obrigada por compartilhar suas ruínas, torço para elas te mostrarem novos modos de reconstrução. Bjs!