#23 – Escrever como quem não é lida
(Arte: Bonnie Marie Smith)
Conversando com um amigo tempos atrás, me peguei dizendo: eu só consigo escrever quando tenho certeza que ninguém vai ler. Pra que a escrita funcione, preciso acreditar que aquilo que estou escrevendo não vai sair da gaveta jamais. Porque, se eu sentar pra escrever pensando no momento em que o texto vai ser lido, minha cabeça entra imediatamente num redemoinho de “o que as pessoas vão achar? e a pessoa X, será que ela vai ler? como a pessoa Y leria isso aqui?”, de forma que o texto deixa de ser o que eu queria que ele fosse e passa a ficar contaminado por uma série de projeções. Escrever com o medo de estar escrevendo algo péssimo ou com o desejo de escrever algo incrível são dois caminhos inviáveis pra mim: fico paralisada diante da página em branco, começo a duvidar de cada escolha de palavra, passo séculos decidindo uma mísera pontuação.
Na mesma conversa, também me peguei dizendo: parece que a minha cabeça faz qualquer negócio pra não escrever. Se me perguntarem se eu quero lavar um banheiro ou escrever, vou dizer: lavar um banheiro. Fazer um tratamento de canal ou escrever: tratamento de canal. Escrever me faz sentir diante de um precipício. Posso cair a qualquer momento. É desconfortável, desagradável, angustiante, pavoroso. Então por que eu sigo escrevendo?
Sei lá. Talvez por isso, porque tenho medo de escrever, mas tenho mais medo ainda de não escrever. Acontece também que eu passei muitos anos brincando que eu era uma “escritora não praticante”. Publiquei 2 livros, escrevo uns textos aqui e ali na internet, mas, na maior parte do tempo, todas as ideias literárias que eu tenho nascem e morrem dentro da minha cabeça. Não chego a colocar nada no papel. Sou uma escritora platônica, uma escritora em potencial.
Isso, é claro, tem a ver com o perfeccionismo. Na nossa cabeça, as ideias fluem e se encaixam perfeitamente, sem esforço. É fácil, tranquilo, confortável. Muito diferente da vida real, em que as ideias precisam ser trabalhadas e retrabalhadas de forma exaustiva e, mesmo assim, às vezes pedem uns bons anos pra encontrar algum encaixe (longe de perfeito). Escrever, na vida real, é custoso, exige tempo, suor, entrega, boas doses de paciência, uma grande disposição para lidar com o erro — e também com as nossas limitações.
Lembro que, quando publiquei meu primeiro livro, um dos meus maiores incômodos era pensar que todo mundo poderia ler o que eu escrevi. Todo mundo incluía: amigos, antigos professores, pessoas que amei, familiares distantes, meu dentista. Na prática, percebi que poucas dessas pessoas realmente leram o livro, mas no momento do lançamento me pareceu muito assustador imaginar o que elas pensariam de mim ao ler as coisas que eu escrevia. Cheguei a receber mensagem de uma tia dizendo que não tinha entendido nada.
A verdade é que não dá pra saber como aquilo que a gente escreve vai bater no outro. O que ele vai pegar dali, de que forma vai ler, se vai passar a enxergar a gente de forma X ou Y depois do que leu. Até mesmo porque não dá pra saber como as pessoas enxergam a gente pra começo de conversa. Escrever um livro de poesia talvez não batesse muito com a percepção que algumas pessoas tinham de mim. Pra quem me conhecia superficialmente — tímida e introvertida —, talvez a passionalidade ou a morbidez de alguns poemas tenha causado mesmo um estranhamento. Talvez outras pessoas tenham lido e pensado: que merda. Também faz parte.
Sei que boa parte da minha dificuldade em ser lida vem daí, dessa sensação de não poder prever ou antecipar a leitura do outro. Mais do que isso, vem também do medo de estar sendo vista para além do que quero ser vista (ainda que a gente saiba, é claro, que aquilo que nós escrevemos não somos nós, mas algo que nos atravessa — tem algo da gente, mas também outros tantos algos que foram sendo captados em outros tantos lugares). Colocar a escrita no mundo, bem ou mal, exige uma espécie de desnudamento.
E eu não sou muito boa com desnudamentos. (disse a mulher que destrincha boa parte de suas catástrofes pessoais em uma newsletter semanal.)
Oito anos depois
Por uma grande coincidência (oi, universo, é você?), justo na semana em que decidi falar sobre o meu medo de escrever, o Facebook me mostrou que o lançamento do meu primeiro livro completou 8 anos. 14 de outubro de 2014, na Travessa de Botafogo, A primeira morte nascia. É um livro que já não conversa muito comigo (e a pessoa que eu sou nas fotos me parece quase uma estranha), mas é curioso me ver ali: vestido solar, pré-pandemia, pré-2018, ainda vivendo o luto pelo pai que perdi em abril, assinando livros com as mãos suadas de ansiedade, mas abrindo um sorriso que parecia genuíno em quase todas as fotos.
Li, assisti, encontrei
✷ Sobre pessoas que gostam de newsletters.
Se cada plataforma e cada formato atende um perfil de público, de necessidade ou de curiosidade, gosto de pensar que quem cria e consome conteúdo na caixa de entrada é um certo “tipo” de gente. Gente que gosta de ler. Gente que gosta de escrever. Gente da época dos blogs, das fanfics, dos fóruns. Gente que preserva seus espaços virtuais, que cuida do que chega, como chega, quando chega. Gente que escolhe a dedo o que compartilha, como compartilha, que coloca intenção em cada palavra.
✷ Falando nisso, newsletter do André Araujo: mal começou e eu já amo. A primeira edição é um ensaio maravilhoso sobre o horror latino-americano.
✷ Por que parece cada vez mais difícil criar algo original diante da overdose de conteúdos iguais? Perfeito esse texto da Carla Soares.
✷ Gostei muito do que a Babi Bom Angelo comentou sobre como a relação com os livros devia ser diferente no passado, quando a gente ainda não tinha essa quantidade absurda de títulos pra escolher.
Exercício que me faz pensar em leitores de tempos distantes, quando não existia a profusão de lançamentos, a quantidade quase sufocante de títulos na estante. Um livro querido era sugado à exaustão. Passava de mão em mão. Os trechos favoritos, declamados. (…) Experiências literárias que soam despropositadas na era das metas. A pressa presenteia com números, mas não com laços.
Registro desse fim de semana de surtos & artes por aqui. Ando fazendo muitos experimentos com tintas, colagens, canetas, e tenho percebido que algumas coisas que a gente cria não fazem muito sentido sozinhas, mas podem ser aproveitadas de outras formas. Essas duas folhas pintadas, por exemplo, muito provavelmente vão ser usadas em colagens. Criar tem muito a ver com combinar diferentes elementos. Pegar peças de diferentes lugares, misturar contextos, sobrepor ideias, investigar o que surge a partir daí. Um processo bem semelhante ao de escrita, inclusive.
ADOREI esta edição <3 eu também encontro conforto na ideia de não ser lida. ainda mais pq meu trabalho clt é exibido pra uma galera. ainda morro de medo de cometer um erro bizarro e virar meme nacional (aquelas exageradas!).
e obrigada por compartilhar um trechinho da minha newsletter ;) fiquei felizona!
Maíra, mal conheço sua newsletter e já considero pacas! Sem querer comparar (juro que não estou), mas senti uma sintonia entre o que você disse e o que eu escrevi há uns meses: https://imaginaso.substack.com/p/imagina-so-pra-onde-vao-as-ideias
Achei linda a noção de escrever fingindo que é só pra você, tirando o peso do julgamento do outro. Até porque, no fim das contas, o outro é só consequência. A gente escreve porque precisa mesmo. Obrigada pelo conteúdo e pelos links, sempre interessantes!