#26 – Ninguém vai te dizer pra onde ir
Nos momentos em que me sinto mais desnorteada como escritora ou artista, sempre penso: queria ser dentista. Porque parece tão simples o trajeto de um dentista: você cursa Odontologia, sai com o diploma, ganha experiência, vira um dentista. É um caminho simples, sem grandes retornos, recuos ou curvas sinuosas. O que não quer dizer que seja um trabalho simples, mas o caminho pra chegar lá não tem grandes mistérios. Assim como, sei lá, Medicina, Psicologia, Direito. São áreas em que você se forma, tem aquele diploma que diz “essa pessoa é capacitada para fazer X” e isso automaticamente te dá o direito de fazer X — e ganhar dinheiro com isso.
Na literatura ou na arte, a história é bem diferente. Não existe caminho certo. Alguns escritores fizeram faculdade, outros não. Muitos artistas vieram de outras áreas, uns tantos começaram cedo, outros se descobriram mais tarde. Mas em comum entre todos eles está a ausência de um trajeto simples, direto, óbvio.
Essa falta de um caminho claro me fez passar muito tempo esperando orientações ou validações alheias. Busquei por anos uma pessoa que me pegasse pela mão e me levasse, me dissesse: é assim. Faz isso, não faz aquilo. Vai por aqui, ali não. Ou alguém que me desse a validação que eu precisava pra me sentir de fato uma escritora ou uma artista. Alguém que colasse um carimbo de qualidade na minha testa com a mensagem: atesta-se para os devidos fins que essa pessoa está capacitada a fazer arte e literatura — e a cobrar por isso. Eu queria alguém que me mostrasse o caminho certo, mas também que me liberasse para entrar nele. Alguém que me abrisse a chancela, me dissesse: sua entrada foi liberada, você é boa o suficiente. Agora é só seguir essa rua e pronto, você vai receber o seu título oficial de escritora/artista na próxima guarita.
Nada disso aconteceu. A orientação não veio. A validação também não. É claro que, eventualmente, a gente encontra pessoas que estão dispostas a compartilhar o trajeto delas e, nessas trocas, existe uma boa oportunidade de enxergar novos caminhos, descobrir possibilidades, pegar dicas, etc. Mas, no fim das contas, a verdade é que ninguém vai te dizer pra onde ir. Ninguém pode te dizer pra onde ir.
Quando se trata de trajetórias artísticas, não há só um caminho certo, mas uma infinidade de percursos que podem, inclusive, chegar a diferentes lugares. E, pra influenciar esses percursos, entram em jogo também as nossas histórias de vida, nossas bagagens peculiares, nossa própria forma de fazer as coisas. Porque — ao contrário de um canal ou uma extração que, muito provavelmente, só podem ser feitos de 1 ou 2 formas diferentes (sei lá, se não for isso: foi mal, dentistas) — a arte e a literatura são imensas. Há uma infinidade de recursos, materiais, estilos. E também de possibilidades, tanto para produzir quanto para colocar essa produção no mundo. Aqui não existe O-caminho-das-pedras-capaz-de-te-fazer-chegar-ao-lugar-certo, porque o próprio conceito de lugar-certo é questionável.
Na época do meu mestrado, (como muitas mulheres) senti uma leve síndrome da impostora. Afinal, quem era eu na fila do pão pra dizer qualquer coisa sobre a poesia contemporânea? Numa dessas, em uma reunião com a minha orientadora, ela disse uma frase que anda comigo até hoje: a gente precisa se autorizar. Porque, se a gente não se autoriza, ninguém vai chegar pra autorizar a gente. Muito menos nós, mulheres (ou pessoas LGBT+, ou pessoas racializadas, ou membros de qualquer grupo marginalizado). Nós não costumamos receber essas autorizações do mundo. Se a gente não se autorizar a ir, vamos morrer esperando que alguém apareça pra liberar a nossa entrada.
É claro que se dar essa autorização é mais fácil na teoria que na prática. Na prática, a minha cabeça repete uns 74 mas-quem-sou-eu-na-fila-do-pão? por dia enquanto tento divulgar o que escrevo, publicar conteúdo na internet, ousar planejar a abertura de uma lojinha de artes ou um curso sobre literatura. Na prática, me sinto barrada na guarita 24h por dia, torcendo pra que alguém apareça logo e me dê essa entrada, esse famigerado GOLDEN TICKET capaz de me fazer entrar na fantástica fábrica de chocolate e diluir a sensação de ser uma impostora que vive latejando na minha cabeça. Mas, quando me sinto tão travada, tão minúscula, que fica impossível fazer qualquer movimento rumo ao que eu gostaria de produzir, a voz da Martha me volta à cabeça: a gente é que precisa se autorizar. A gente é que precisa inventar um trajeto possível. Forjar um golden ticket a partir da mais pura esperança e da convicção de que, sim, a guarita também é nossa para ultrapassar. Tem sido um bom mantra por aqui.
Café com livro
Hoje é dia de mais uma indicação com 20% de desconto graças à nossa parceria com a Dois Pontos! E eu não poderia indicar outro que não fosse… ELE.
Quem me segue no Instagram acompanhou meus surtos lendo Mandíbula nas últimas semanas, e ontem, enfim, eu fechei a leitura. Pensei até em guardar a indicação pra quando escrevesse uma resenha, mas a verdade é que eu não sei se vou conseguir escrever. Sabe aquele livro tão impactante que deixa a gente mudo? Pois é.
Mandíbula conta a história de uma adolescente, Fernanda, que é sequestrada pela professora de Literatura. Conforme vamos nos aprofundando nas personagens e suas histórias, o que encaramos é uma espiral de traumas, medos, abandonos, desejos e crueldades. Roubando um trechinho da sinopse: “Com um texto imaginativo e surpreendente, a equatoriana Mónica Ojeda cria neste romance não apenas personagens desconcertantes, mas também uma ambientação perturbadora para uma narrativa de nuances e contornos tênues entre o horror, o desejo e a perversidade, investindo nas relações de professoras e alunas, mães e filhas, irmãs e amigas do coração. Aqui, o medo e sua relação com os laços familiares, a sexualidade e a violência que espreita o amor estão expressos, várias vezes literalmente, por meio da mordida feroz e do ataque quase sexual, das brincadeiras dolorosas e da confiança quase dependente entre meninas e mulheres que se conectam, mas também se (a)traem.”
É um livro que eu só consegui descrever até agora como uma língua enfiada no olho. Absurdo, desconfortável, monstruoso, perturbador, deliciosamente terrível.
Pra comprar com desconto na Dois Pontos, basta entrar por esse link e usar o cupom CAFECOMCAOS.
Li, assisti, encontrei
✷ Não sei por que demorei tanto pra ver The house, mas vi ontem e fiquei encantada. São 3 curtas de animação com histórias relacionadas a casas. As primeiras afundam mais o pé no terreno do horror, a última não tanto, mas as três são incríveis e trazem uma atmosfera bizarrinha e quase surrealista (no segundo curta, então, esse senso de absurdo vem com força).
✷ A gente não sabe mais como ter hobbies? Esse post traz uma reflexão bem interessante sobre o assunto.
✷ Já ouviu falar em antibiblioteca? Eu gosto muito dessa ideia, embora agora, por motivos práticos de pouco-espaço-e-muito-livro, esteja começando a adotar aquela velha estratégia: sempre que compro alguns livros novos, me obrigo a desapegar de alguns antigos. Falando nisso, em breve vou aproveitar que comprei uns títulos na feira da USP e vou colocar outros pra vender. Se você tem interesse, passa lá no meu Instagram!
Entrar ou não entrar no… Koo?
Essa semana também rolou um auê com o possível fim do Twitter (que eu particularmente duvido que aconteça, mas talvez isso seja só a minha apatia contemporânea falando), então todo mundo já foi em busca de outra rede social com o mesmo espírito tuiteiro. E a rede encontrada foi uma chamada… KOO, prato cheio pros trocadilhos brasileiros.
Eu não entrei no Koo ainda (talvez entre depois, nunca se sabe), mas esse clima de fim de festa no Twitter me fez pensar em como é engraçado que as redes sociais tenham se tornado quase que pequenas cidades dentro desse grande universo da internet. Com algumas pessoas, eu só tenho contato no Twitter, porque elas quase não usam Instagram. Outras eu só consigo acompanhar no Instagram, porque não têm Twitter. Meus professores da UFRJ eu só acesso quando desenterro meu Facebook abandonado. Minha impressão é que as redes se tornaram pequenas ilhas com as suas populações, compartilhando dialetos em comum, práticas de etiqueta próprias, piadas internas. Algumas pessoas doidas (como eu) circulam por todas as ilhas, outras ficam só em 1 ou 2.
Às vezes, quando me pego pensando em diminuir o número de redes que tenho, lembro das pessoas com quem eu perderia o contato. Quando volto pro Facebook, volto pelos professores que gosto de acompanhar e ainda estão lá. Quando quero desativar o Twitter, penso que existe ali entre as pessoas da minha timeline uma espécie de pacto silencioso que eu não gostaria de perder (os surtos que acontecem no Twitter talvez só possam ser compreendidos por quem é fluente no idioma tuitês).
Enfim, por enquanto sigo com as minhas, sei lá, 5 redes sociais, tentando descobrir como navegar através delas sem me deixar asfixiar também por essa paranóia de construir uma presença digital e publicar conteúdo de qualidade e atrair seguidores e engajar e blábláblá-deus-me-livre-socorro.
Ler esse texto foi receber um abraço apertando, daquele que esmaga os ossinhos, mas libera os nós. Essa busca de validação, junto à síndrome de impostora, me sufoca de tempos em tempos. Obrigada pela libertação.
Me identifiquei demais com esse texto! Por vezes eu desejo fortemente voltar no passado a fazer escolhas mais "objetivas" no ramo profissional - e olha que tenho uma das profissões que vc citou! Acredito que por ter optado o caminho autônomo, fica mesmo essa esperança de que em algum momento alguém aparecerá estendendo a mão e vai me levar, finalmente, ao caminho certo. Em doze anos de formada, nunca aconteceu - risos, choros. Na estrada das artes e literatura, também não tem acontecido e não sei como raios matar essa sensação, pq sinto que ela atrapalha bastante. A "auto" autorização já rolou, mas parece que falta um a mais... O que será?
beijo.