#27 – Existe beleza no não pertencimento
De todos os meus hábitos ruins, me comparar constantemente com os outros é o pior deles. Acho que peguei essa mania lá atrás, quando eu ainda era uma criança/adolescente esquisita que precisava muito se sentir encaixada nos grupos. Eu não queria destoar, então verificava com frequência o que os outros estavam fazendo e como estavam fazendo pra ter certeza de que eu não faria nada que fugisse muito à norma. Boa parte da minha adolescência, aliás, foi essa constante tentativa de mimetizar padrões, copiar comportamentos, me camuflar nos grupos. Muitas vezes, eram tentativas frustradas, e eu continuava me sentindo deslocada, destoante, ainda que disfarçasse bem.
Com o passar dos anos, fui aprendendo a valorizar as minhas estranhezas e também (aquariana que sou) a ver beleza no que diverge. Ainda assim, mesmo aqui, aos 32 anos, sinto que a minha cabeça ainda hospeda um discreto cabo de guerra entre a vontade de mergulhar de vez nas minhas esquisitices e a velha necessidade de seguir camuflada, fazendo o que a maioria faz. Provavelmente porque a camuflagem traz uma ilusão gostosinha pra quem não está acostumado a pertencer: a gente quase esquece da nossa natureza alienígena. Como se fosse uma prévia, um aperitivo do que é a vida de uma loira odonto que dirige o seu HB20, tem 40 amigas com a mesma cara e atravessa os dias confortavelmente adaptada ao seu meio.
A sensação de pertencer a um grupo era algo que eu desejava tanto quando criança e adolescente que, por consequência, destoar se tornou sinônimo de isolamento e tristeza. Ainda que eu estivesse destoando porque estava fazendo as coisas do meu jeito, seguindo o meu próprio estilo ou minha forma de ver o mundo, esse movimento sempre vinha acompanhado de uma solidão pavorosa, uma sensação de desconexão com as pessoas ao meu redor. O hábito de verificar o que os outros estavam fazendo veio daí: era uma forma de recalcular a rota e regular o quanto eu destoava, de maneira que nunca ficasse muito distante do grupo.
O grande problema nisso tudo é que chega um momento em que você já não sabe mais o que é você e o que é camuflagem. É difícil separar o nosso próprio desejo da nossa necessidade de dançar conforme a música. Afinal, eu quero mesmo fazer X ou eu penso que quero porque é o que todo mundo parece querer? É essa roupa que eu quero usar ou essa é a versão-editada que eu me convenci a adotar porque a roupa que eu realmente queria estar usando faria as pessoas me olharem estranho no ônibus? Eu de fato quero postar isso ou só estou postando porque é o que rende mais validação em forma de likes?
Recentemente, comecei a me fazer essas perguntas até mesmo em relação ao que eu crio. O que eu escreveria se não pensasse tanto no que os autores que eu amo já escreveram, se não carregasse esses parâmetros-fantasma sussurrando no meu ouvido o tempo todo? O que eu desenharia se não gastasse tanto tempo comparando os meus desenhos aos dos outros?
Na semana passada, percebendo que eu estava olhando muito pra fora e pouco pra dentro, fiz um movimento brusco e desativei todas as redes sociais. (Talvez eu tenha sido motivada também pela amargura de ver todo mundo sendo feliz na Flip enquanto eu resolvia perrengues a quilômetros de distância de Paraty? Sim.) É estranho perceber que, sempre que eu faço esse movimento e me desconecto das redes, automaticamente começo a raciocinar melhor. Minhas ideias fluem mais, anoto com mais liberdade, desenho sem tanta pressão sobre as mãos. É claro que o mundo exterior continua aí, com todas as comparações e expectativas, mas desativar as redes sempre me faz sentir como se eu tivesse entrado em um casulinho protegido, onde eu posso exercitar as minhas esquisitices com calma, sem olhar obsessivamente pros lados.
Desse casulo, voltei com um pensamento: não adianta a gente se comparar tanto com as nossas referências, se o que faz delas incríveis é justamente a autenticidade. Se Mariana Enriquez tivesse tentado ser mais como as referências dela, talvez ela não escrevesse de forma tão autêntica — e talvez não fosse uma das minhas autoras favoritas. Se Frida Kahlo tentasse ser mais como outros artistas, não teria criado um estilo tão próprio, tão ela. No fim das contas, por mais maravilhosas que sejam as pessoas que a gente admira, tentar fazer as coisas como elas fazem é um desperdício de tempo e energia. O máximo que a gente pode conseguir com isso é virar uma imitação piorada de algo verdadeiramente autêntico. Não compensa.
Que me perdoem o clichê, mas agora tenho feito o exercício de reencontrar a Maíra-criança-esquisita que ainda existe em mim, acolher toda a autenticidade dela, dizer que ela já pode parar de tentar imitar os outros. Parar de olhar tanto pros lados. Tá tudo bem se sentir uma alienígena. Existe beleza no não pertencimento. Não é fácil, nem simples, mas fica como um dos grandes objetivos de 2023: tentar ser o mais eu que eu puder.
Essa newsletter deve ser lida ao som de Patricia Clarkson dizendo: “At a certain point in your life, probably when too much of it has gone by, you will open your eyes and see yourself for who you are. Especially for everything that made you so different from all the awful normals. And you will say to yourself: but I am this person. And in that statement, that correction, there will be a kind of love.” (trecho do filme Phoebe in Wonderland)
Li, assisti, encontrei
✷ Sobre aprender a dizer não.
✷ É preciso coragem pra trilhar o próprio caminho.
✷ Já imaginou escrever uma carta pra sua versão do futuro e escolher a data em que você vai receber essa carta por e-mail? Essa é a proposta do site Future Me. Ótima pedida pro fim de ano.
Que brilho essa edição!! Todos os sinais levam para fora do insta, impressionante
E muuuito obrigada pela indicação, de coração ♥️ Um super beijo!
Estou na mesma, Maíra. Uma virada de página necessária, que me parece tão comum a nós mulheres - digo, a camuflagem, a vontade de sumir na multidão. Que ousadia ser a gente, né? Que o seu caminho seja cheio de descobertas maravilhosas :)