#28 – Inventário de atravessamentos literários (2022)
2022 foi o ano em que eu retomei — lentamente — o hábito de leitura. Não sei se já comentei aqui, mas durante a pandemia eu entrei num bloqueio completo e ler mais do que 5 páginas já me parecia uma grande vitória. A ansiedade faz isso com a gente, às vezes a cabeça roda em uma velocidade tão alta que manter o foco em um livro é simplesmente inviável. Em 2020 e 2021, os poucos livros que consegui finalizar foram, em sua maioria, livros de contos, porque esses eu conseguia ler de forma fragmentada. Já esse ano, decidi não ser muito ousada nas metas e estipulei que tentaria ler 12 livros, 1 por mês. Consegui. Até aqui, li 15, e talvez chegue a 16. Um lado meu gosta de enfatizar que isso não é muita coisa, mas o outro lado — mais saudável — me lembra que a leitura não deveria ser arrastada pela neurose da produtividade. Talvez seja mais interessante pensar não em como ler mais, mas em como ler melhor.
De qualquer forma, estou enxergando esses 15 livros de 2022 como a retomada de um relacionamento antigo. Não li muito (o que é muito? o que é pouco? subjetivo), mas li obras incríveis que me atravessaram profundamente, e isso por si só já foi um ponto muito positivo. Pensando nisso: decidi fazer um singelo inventário de atravessamentos literários do ano.
Mandíbula (Mónica Ojeda)
Minha maior obsessão de 2022. Eu já tinha lido um livro de contos da Mónica (Las Voladoras, ainda não traduzido pro português), então fui com grandes expectativas — e ainda assim ela conseguiu me surpreender. Mandíbula é uma porrada, uma língua enfiada no olho, um desconforto, um absurdo, um espanto. Romance visceral, costurado a partir de fragmentos de diferentes personagens que colidem de maneira violenta. É um livro que enfia o dedo em temas complexos, como maternidade, adolescência, culpa. Entrou direto pros meus favoritos da vida (Mónica, conte comigo pra tudo).
Pássaros na boca (Samanta Schweblin)
Depois da equatoriana Mónica Ojeda, minha segunda leitura favorita foi da argentina Samanta Schweblin (desde 2020, sigo na onda latino-americana, e não canso de me surpreender). A edição que eu li foi a publicada pela Fósforo que, na realidade, é uma edição dupla, contendo dois livros da autora: Pássaros na boca e Sete casas vazias. Entre o insólito e o horror, os contos de Samanta são o puro suco do estranhamento. A gente sai da leitura espantado e desconfortável, sem saber muito bem o que aconteceu, como se tivesse presenciado uma cena familiar, mas que foi subvertida, retorcida, transformada em algo que tem qualquer coisa de monstruoso e inquietante. Fiquei tão impactada quando li que escrevi mais sobre ele lá no blog da Noturna.
Além de maravilhoso, Pássaros na boca ainda ganha o prêmio de edição mais linda que eu vi esse ano. Trabalho impecável da Fósforo. Aliás, pros leitores da newsletter, ele está saindo com 20% de desconto (de R$ 69,90 por R$ 55,92) na livraria Dois Pontos durante o mês de dezembro. É só acessar o link e usar o cupom CAFECOMCAOS.
Eu que nunca conheci os homens (Jaqueline Harpman)
Imagina acordar em uma cela, com outras 40 mulheres, sem fazer ideia do que aconteceu ou por que vocês foram parar ali. Essa é a história das personagens desse romance, prisioneiras de homens misteriosos que aparecem algumas vezes por dia pra alimentá-las e se recusam a dar qualquer informação. Eu que nunca conheci os homens é um livro desolador, que aborda justamente o assombro que é estar entregue a acontecimentos que parecem não fazer nenhum sentido ou obedecer a qualquer lógica. Também já escrevi um pouquinho sobre ele aqui na newsletter.
A vida real (Adeline Dieudonné)
Outro livro que foi uma porrada (se você gosta de leituras leves, infelizmente não posso indicar nada, aqui só trabalhamos com atropelamentos). O romance conta a história de uma menina que, além de precisar lidar com um pai abusivo, ainda tenta proteger o próprio irmão das brutalidades da vida enquanto atravessa a fase tumultuada da adolescência. A maneira violenta como a trama vai se desdobrando contrasta com a voz da narradora, que é de uma sensibilidade e delicadeza imensas. Também escrevi sobre ele lá no Instagram.
Sacrifícios humanos (Maria Fernanda Ampuero)
Já indiquei Rinha de galos em absolutamente todas as chances possíveis, tanto aqui quanto no Instagram, no Twitter e em todos os lugares onde eu estive nos últimos meses. Sacrifícios humanos é o segundo livro de contos da mesma autora, que saiu recentemente pela editora Moinhos. Aqui, mais uma vez, Maria Fernanda mostra a vocação pra abordar os horrores abjetos da vida real, explorando espantos, nojos, assombros. A escrita dela sempre me lembra algo viscoso, rastejante, terrível e desconfortável. E o fato de muitas narrativas serem protagonizadas por mulheres imigrantes ou gordas, que costumam estar à margem, tantas vezes excluídas ou rejeitadas, me faz amar os contos ainda mais.
2022 ainda não acabou (e no momento eu estou terminando a leitura de A extinção das abelhas, da Natalia Borges Polesso, sobre o qual eu ainda quero falar aqui), mas já dá pra dizer que foi mesmo um ano de muitos impactos literários. Em breve, teremos uma edição só pra falar das leituras que já estão no meu radar pra 2023.
Li, assisti, encontrei
✷ A Dois Pontos convidou várias pessoas — entre autores, jornalistas, etc. — pra dizer qual livro elas mais gostaram em 2022. Bem interessante observar as escolhas de cada um.
✷ Um ano pra virar escritora. Acho que vou embarcar em um projeto parecido.
✷ Estou 100% viciada em Japanese Breakfast. Fazia algum tempo que eu não descobria uma banda nova e voltei a sentir esse gostinho agora (a vocalista, inclusive, é a Michelle Zauner, autora de Aos prantos no mercado, livro que quero muito ler no ano que vem).
E não é que somos… 900?
Antes da Café com caos, eu tive outras duas newsletters (Estilhaços diários e Morri mas passo bem). Algumas pessoas que estão aqui talvez tenham vindo dessa época longínqua, não sei. O fato é que, por lá, eu mandava um e-mail e desaparecia por outros 5 meses. Essa aqui nasceu oficialmente em dezembro do ano passado, mas ficou parada até maio de 2022, que foi quando eu realmente comecei a escrever com assiduidade. É um puta desafio pra mim, que sou péssima com tudo que exige constância, mas tem sido uma experiência ótima. Foram 28 edições gratuitas (provavelmente fecharemos 30 até o fim do mês), 2 edições extras pra assinantes, 900 pessoas e várias mensagens e comentários (que eu tenho uma dificuldade enorme pra responder, então me perdoem, não é por mal).
Agradeço demais a presença de todos vocês e espero que em 2023 tenhamos ainda mais trocas! ♥️
Eu adoro te ler e suas indicações são do meu tino. Anotadas!
Obrigado pelas recomendações! Tentando mergulhar na literatura latina por aqui, e vou guardar suas dicas com carinho!