#33 – Por onde andam os espaços vazios?
Abro e fecho os mesmos aplicativos várias vezes. O celular avisa que meu tempo de tela diminuiu: agora são apenas 7h e alguns minutos por dia. Tempos atrás, comentei com a minha mãe que não via mais as pessoas tendo hobbies. “O que você gosta de fazer no seu tempo livre?”, pergunta algum formulário ingênuo, como se o próprio conceito de tempo livre já não fosse uma piada pra boa parte dos brasileiros. E a gente mente, citando atividades que até gostaríamos mesmo de estar fazendo, mas que, na maior parte das vezes, não fazemos tanto assim, porque estamos com os olhos enfiados no celular. Tempo livre se tornou sinônimo de scrollação infinita nas redes sociais. Eis o hobby. Estar cronicamente on-line.
Eu nasci em 1990. Minhas primeiras experiências on-line foram em blogs e fotologs, cheguei aqui quando era tudo mato, numa época em que ainda era possível entrar e sair da internet. Hoje, parece que já não há saída. Por todos os lados, somos bombardeados por estímulos infinitos, há sempre um vídeo, um áudio, uma imagem, uma trend, um meme, uma polêmica, uma timeline que não termina nunca, pois novos conteúdos estão surgindo sem parar e nós não damos conta de assimilar tudo. É um excesso — e um excesso que vicia. Estar com os sentidos permanentemente ocupados, estimulados, agitados torna cada vez mais difícil a experiência de não estar diante de estímulo nenhum. Já não existe ócio. Não há espaço pro silêncio. Os vazios parecem cada vez mais raros — e, quando surgem, ficamos em pânico: rápido, rápido, alguma coisa (qualquer coisa) pra ocupar esse espaço vazio.
Comentei no Instagram outro dia que estava com dificuldade de escrever por não conseguir passar muito tempo parada em frente à página em branco. Começo a ficar angustiada diante daquele nada. Sem celular, sem som, sem televisão. Sozinha com os meus pensamentos, o verdadeiro pesadelo dos seres humanos de 2023. Mas como criar qualquer coisa sem passar por isso? Como criar qualquer coisa estando o tempo todo conectada ou distraída? Não sei se é possível. Nos meus últimos episódios de pane no sistema, em que decidi sair de todas as redes sociais, tinha a sensação de que até mesmo o tempo passava mais devagar. Como se de repente eu lembrasse mais do espaço físico onde estou sentada, como se a realidade ganhasse mais solidez, se tornasse mais palpável — estou aqui, agora. É fácil esquecer. Eu esqueço muito.
Enquanto escrevo esse texto, lembro de um áudio muito utilizado no TikTok que é basicamente uma mulher cantando uma musiquinha improvisada: “everything is content, everything is content”. Tudo é conteúdo. Filme seus processos, seus cotidianos, suas opiniões, suas fragilidades, aqui tudo é conteúdo, tudo pode ser convertido em likes e compartilhamentos. Basta usar um áudio em alta, colocar umas hashtags. O importante é não desperdiçar: se desenhou, tem que postar; escreveu, tem que postar; produziu, tem que postar; pensou, tem que postar; viveu, tem que postar. Junto à lógica do “tudo deve ser preenchido”, outra máxima que eles não nos deixam esquecer: “tudo deve ser aproveitado”. Transformado em conteúdo, rentabilizado, engolido pelas dinâmicas virtuais (e também pelo capitalismo, óbvio, que transforma todo e qualquer aspecto minúsculo do mundo em mais um produto).
Nisso, fico me perguntando se não há algo de revolucionário em amar as coisas inúteis. Em dedicar-se ao que não tem qualquer utilidade, ao que demanda um tempo mais longo, mais cuidadoso. A dedicação ao mergulho — quando ninguém parece ter tempo para nada além de molhar os pés.
Li, assisti, encontrei
✷ A máquina precisa que você esqueça que demorar faz parte.
✷ Coisa mais linda ser citada nessa edição da
✷ Sobre a obsessão por subidas intermináveis, algo que conversa muito com o que falei na edição de hoje.
✷ Esse outro texto, sobre genialidades banalizadas e a euforia excessiva que vem invadindo a forma como percebemos o mundo, também tem muito a ver com o que falei aqui.
indo além do artigo da folha, penso nessa síndrome de stendhal transportada para absolutamente tudo: filmes, alimentos, política etc. essa síndrome foi catalogada a partir de relatos de palpitações, vertigens, ataques e infartos diante da exuberância artística na cidade italiana de florença. galera tipo intensa. e a gente anda meio assim, tendo infartos por qualquer motivo (não que florença seja qualquer coisa, mas vocês entenderam). se não for gênio nem leio, se não for pra me acabar nem saio de casa, a série que estreou semana passada é a melhor da história e outras empolgações excessivas por tudo.
30 dias de escrita?
Tenho tentado escrever coisas que saiam um pouco da minha zona de conforto, seja em termos de estilo, temas, vozes narrativas, etc. etc. Então esses dias pensei: e se eu fizesse um desafio de escrita, com 30 palavras-norteadoras? Uma forma de alavancar alguns exercícios literários e me obrigar a escrever com mais frequência.
Nem sempre tenho conseguido. Às vezes escrevo, às vezes não. Mas tenho curtido ler o que outras pessoas andam escrevendo, então, se você decidir participar e escrever alguma coisa, me marca lá no Instagram (@mairacomacento) pra eu ler também.
Dois pontos me bateram forte aqui:
1. Quando você trouxe que "ainda era possível entrar e sair da internet", nossa, que bizarro pensar isso! Também sou da década de 90 e lembro quando a internet lá em casa só podia ser usada nos finais de semana e ainda tinha que dividir com a família toda. Eu entrava, organizava meu perfil no orkut e depois saia, só voltava no próximo sábado, parece até um mundo distópico.
2. Esse ponto aqui: "O importante é não desperdiçar: se desenhou, tem que postar; escreveu, tem que postar; produziu, tem que postar; pensou, tem que postar; viveu, tem que postar. Junto à lógica do “tudo deve ser preenchido”, outra máxima que eles não nos deixam esquecer: “tudo deve ser aproveitado”."
Há alguns meses me peguei pensando exatamente nisso quando me vi querendo fazer as coisas apenas para postar no instagram. A viagem só poderia ser legal se eu conseguisse postar. Depois disso, todas as vezes que penso em postar qualquer coisa eu me pergunto: Você está querendo postar isso por que? Para quem? Para quê? Geralmente a resposta é sempre a mesma e eu vejo que o postar ali na rede seria apenas para acalentar meu ego, nada além.
Enfim, seu ótimo texto me trouxe muitas reflexões, obrigada!
eu também nasci em 1990 e sinto falta daquele jeito de usar a internet, de quando eu era adolescente, com horários e momentos para estar conectada. ultimamente tenho tentado me aproximar daquele formato. tem dias que me sinto excluída, porque a comunicação do dia a dia é permeada por essa estrutura superconectada, mas confesso que tem feito muito bem para a saúde mental.
ótima reflexão, maíra.
valeu pelo texto :)