#48 – O que escolhemos priorizar
É baixa manutenção afetiva ou é só o velho hábito de priorizar relações amorosas em detrimento das amizades?
Vocês se falam uma vez a cada seis meses, mas tudo bem. A amizade não diminui por isso. Saem uma vez por ano, quando as agendas ocupadas conseguem o milagre de sincronizar. Mas ninguém se ressente. O carinho sobrevive às ausências, aos silêncios, até mesmo ao completo desconhecimento a respeito do que está ou não acontecendo na vida um do outro. Não tem problema se já somos quase estranhos. A amizade de baixa manutenção não cobra, ela aceita que aquilo é o possível na vida adulta — e tudo bem.
Tenho certa preguiça de algumas expressões que de repente parecem nortear as dinâmicas de relacionamentos. A famigerada baixa manutenção afetiva foi uma dessas que se espalhou pela internet e passou a ocupar conversas, explicar desaparecimentos, justificar distâncias, como se chancelasse que a única amizade possível na vida adulta é aquela em que a gente se fala e se encontra conforme for viável (quase nunca), mas ninguém deixa de ser amigo de ninguém.
Confesso que, num primeiro momento, o conceito fez sentido para mim. Eu que não sou muito boa em responder mensagens, que muitas vezes me embanano tentando equilibrar as minhas próprias demandas, gostei da ideia de não ser cobrada quando fosse uma amiga ausente. Pensei: é a vida adulta, não tem jeito. É o capitalismo, não tem jeito. Faz parte. Mas não sei se faz. Sim, é inegável que as correrias do cotidiano deixam o nosso tempo cada vez mais escasso. Quem consegue manter uma vida social ativa trabalhando incansavelmente e tentando encaixar todas as outras necessidades nas brechas que sobram? O malabarismo que a gente faz com as escalas de trabalho absurdas, as demandas familiares, os serviços domésticos, os cuidados com a saúde, tudo isso sem enlouquecer, já é suficientemente difícil. Me parecia natural que, no meio dessa confusão, umas mensagens ficassem sem resposta. Umas saídas fossem adiadas. Semana que vem, quem sabe. Só que a semana que vem também está difícil, então talvez na outra. Vamos marcar, amiga, saudades. Sim, vamos marcar!
Até que, um tempo atrás, vi em uma postagem do Instagram um comentário que dizia: “baixa manutenção afetiva para as amigas, mas sempre disponível para homem”. Pois bem. É onde começa o problema para mim. Por que parece tão natural que uma pessoa passe meses sem falar com a amiga, mas esteja de prontidão para responder às mensagens de um ficante? Por que é natural que as saídas com as amigas continuem sendo adiadas até acontecerem uma vez por semestre enquanto as saídas com um namorado são encaixadas facilmente entre um compromisso e outro? Para o amor, a gente encontra tempo, move o que precisar ser movido, remaneja, rearranja, dá um jeito de caber. Para a amizade, o eterno adiamento dos planos.
No fim das contas, meu problema não é bem com o conceito de baixa manutenção afetiva, mas com o fato de ele ser utilizado somente em determinados contextos. Afinal, se o seu gosto por relações de baixa manutenção só se aplica às amizades e nunca às relações românticas, talvez isso tenha menos a ver com a sua disponibilidade e mais a ver com a forma como você aprendeu a priorizar o amor em detrimento da amizade. (Leia-se: lógicas monogâmicas.) Por que parece tão simples entender que o amor precisa ser alimentado para crescer e se manter, mas compramos facilmente a ideia de que amizades são relações que podem ser deixadas de lado por um longo período de tempo sem nenhum prejuízo?
Apesar das faltas e correrias, não consigo entrar muito na lógica da baixa manutenção. Mesmo um cacto, que não precisa ser regado com tanta frequência, tem também as suas necessidades de cuidado para seguir vivo. Algumas amigas eu encontro com pouca frequência, mas ainda assim busco alimentar a nossa relação de outras formas. Sinto que as ausências muito prolongadas também dizem muito sobre como as prioridades de cada um têm sido organizadas. Tirando casos mais extremos, é claro (e digo isso por experiência própria, pois muitas vezes sumi da vida dos outros por longos períodos devido à depressão), é comum que, na hora de adiar algum contato, a amizade é que seja jogada para segundo plano. Tenho para mim, inclusive, que gostamos tanto do conceito de baixa manutenção afetiva justamente porque ele tira o peso dessa escolha, inocenta a nossa negligência: imagina, não é uma questão de priorizar uma coisa ou outra, é só porque as amizades de baixa manutenção afetiva são a única amizade possível na vida adulta. Mas será? Ou a gente só aprendeu a organizar a vida de tal forma que as amizades sejam tratadas como um item que fica lá no fim da lista de prioridades e que não precisam ser cuidadas com tanto afinco como os relacionamentos amorosos?
Sei lá. Cada um que cuide das suas demandas e possibilidades, mas, por aqui, tem feito mais sentido estar com pessoas que dão às amizades a mesma importância das relações amorosas. Dentro do que é viável para cada um, é claro, e considerando os muitos malabarismos de cada dia, mas entendendo que talvez a baixa manutenção afetiva seja só um jeito delicado de disfarçar quais são as relações que a gente tem escolhido priorizar — e quais a gente aceita deixar para depois.
Li, assisti, encontrei
✷ Está saindo pela Seiva o livro Como criar histórias: Um guia prático para escritores, da Ursula Le Guin, e eu fiquei bem animada para ler. Comprei na pré-venda, com 30% de desconto. Espero que chegue logo.
✷ Meus mortos não costumam me dar trabalho. Bonito texto sobre o luto.
✷ Também sobre o luto: “Há tanto que não conheço – e agora, não posso nem perguntar.”
Muito obrigada pela recepção carinhosa na última edição, que marcou o meu retorno após um looooongo hiato. Fiquei muito contente. Essa segunda edição pós-hiato está sendo enviada numa quarta-feira por força das circunstâncias, mas em breve farei o possível para retornar a periodicidade certinha de enviar o e-mail aos domingos.
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Sou autista e não faço a menor ideia de como começar e manter amizades. Não consigo captar as regras implícitas e aplicá-las na minha vida, da forma como as pessoas típicas parecem fazer. De qualquer forma, como acontece com muitas outras coisas, precisaria de adaptações, mesmo que alguém estivesse disposto a me ensinar as regras de maneira explícita. Por outro lado, sou assexual, sem nenhum interesse em relacionamentos românticos de qualquer tipo, e por vezes é com estranheza que encaro a obsessão de nossa sociedade com relacionamentos românticos, quase como se o ser humano não pudesse viver sem um, quase como se fosse imperativo gostar mais do par romântico que de um amigo. Já ouvi pessoas dizendo que amadureceram muito quando começaram a namorar e sempre sinto certa insegurança com minha vida de solteira, mas será que não podemos amadurecer por meio de nossas amizades?
Sendo autista, talvez o conceito de baixa manutenção afetiva nem faça sentido para mim (precisaria do conceito de amizade atípica, talvez?), mas me parece que dar mais atenção a amigos que a namorados é um ato de rebeldia (e não é muito difícil ser rebelde hoje em dia, não é? Basta dormir 8h por noite, rsrsrs).
Obrigada por me proporcionar essa reflexão!
Quando escuto/leio algo sobre "amizade de baixa manutenção" penso que foi mais uma derrota que tivemos para o capitalismo. Geralmente, os afastamentos ocorrem em razão da sobrecarga da vida, cansaço, indisposição, na necessidade do não-pensar, não-planejar. Aceitar isso e ver menos as pessoas é muito perigoso, ao meu ver, pois nos afasta dos nossos laços, nossas redes, nossa humanidade coletiva, e nos deixa mais à merce do trabalho e sua lógica de produção e alienação. Construir relacionamentos saudáveis para a vida é subversivo!