#50 – Estratégias de conforto existencial
Entre os sufocos cotidianos, preservar o conforto como tática de sobrevivência.
Tem uma cena de Bojack Horseman em que o Bojack diz: “Eu não entendo como as pessoas vivem.” Eu também não. Ou melhor: eu não entendo como as pessoas vivem sem achar a vida um imenso desconforto. Existir, para mim, é extremamente desconfortável. Acredito que boa parte desse desconforto seja decorrente do tipo de mundo em que a gente vive, é claro. Viver em outras circunstâncias, com outras possibilidades, seria uma delícia. Mas quando falo sobre vida, falo sobre a vida aqui, agora, dentro de um sistema capitalista, desigual e violento, acompanhando o colapso climático, os horrores diários, etc. etc. etc. Como viver confortavelmente aqui? Não sei. A última edição foi um tanto sobre isso também.
Terapias e análises ajudam, embora tenham as suas limitações. Mas, no fim das contas, sinto que viver seria de fato inviável se eu não tivesse construído para mim uma espécie de arsenal de estratégias para amenizar o incômodo. Um querido & singelo Guia de Estratégias para Mulheres Exaustas. Tenho feito isso de forma intuitiva há muitos anos, mas nunca tinha percebido a importância dessas estratégias até pouco tempo atrás, quando estava deitada na cama, com uma manta de microfibra aconchegante, um potinho de sorvete, a luz amarela do abajur e um famigerado comfort movie passando na televisão. Como se fosse uma recarga mental, emocional, sensorial, passar aquelas duas horas afundada em conforto me lembrou que eu preciso mesmo fazer um esforço consciente para manter momentos assim no meu cotidiano. Uma espécie de manutenção da máquina, a única forma de garantir que vou continuar rodando por mais alguns quilômetros sem dar nenhum tilt.
Esses dias, também cismei de comprar um abafador de ruído. Digo a mim mesma que é porque só consigo escrever no silêncio, mas a verdade é que o excesso de barulho é muito incômodo para mim a qualquer hora do dia, e a ideia de usar um fone enorme que me isole completamente do mundo parece um afago na alma. Também comprei uma daquelas máscaras para dormir que têm gelzinho dentro, assim você pode colocar no micro-ondas ou no congelador antes de usar (ótimo para dias de enxaqueca). A lâmpada inteligente que me permite controlar a intensidade e a cor da luz de acordo com o momento foi outra aquisição bem agradável.
Sinto conforto na minha escrivaninha cuidadosamente montada, com fotos de coisas que amo coladas na parede, mil caderninhos de desenho e escrita, canetinhas coloridas, uma luminária e um umidificador. Sinto conforto em usar hidratantes cheirosos e fazer meus pequenos spas caseiros (sem cair na neurose doida de uma skincare com 48 etapas e 97 produtos). Sinto conforto em colocar uma roupa velha e acolhedora, dar um nó no cabelo, fechar as cortinas e pegar um livro para ler enquanto se espalha pela casa o cheirinho caramelado do café novo que comprei. Sinto conforto em tudo que não exige muito de mim, tudo que é fácil e flui e não requer grandes elaborações. No meio dos sufocos cotidianos, me parece que esse espaço da fluidez confortável é um espaço que vale a pena preservar. Aqui, não preciso ser nada além de presente. E pronto.
Gosto muito desse conceito de comfort-alguma-coisa, inclusive. Comfort movie, comfort show, comfort book, comfort food. Lembro que, tempos atrás, a partir da expressão “animal de suporte emocional”, se alastrou pela internet uma gíria, e a gente dizia com frequência que alguma coisa era “sei-lá-o-que de suporte emocional”. É minha comida de suporte emocional. Minha planta de suporte emocional. Meu vinho de suporte emocional. Boa parte das comfort-coisas são, no fim das contas, coisas de suporte emocional. O conforto é capaz de dar uma base mais sólida onde a gente pode se apoiar para enfrentar o que é difícil — enfrentar até mesmo o que é incômodo, porém necessário de atravessar. No ano passado, comprei um casaco verde de pelinhos tão gostoso que parece um abraço. E de tanto me sentir acolhida dentro dele, comecei a usá-lo (sempre que o clima permite) nos dias difíceis e ansiosos, quando o mundo me parece pontiagudo demais e eu preciso lembrar que não estou tão vulnerável.
Porque a grande virada foi justamente essa: passar a recorrer às comfort-coisas como uma ação consciente. Dia desgastante? Deixa eu abrir aqui a minha caixinha de ferramentas com todas as possibilidades de conforto que eu posso acionar e ver qual delas funciona melhor para a situação. Às vezes, é uma comidinha gostosa com uma série que já vi 17 vezes. Às vezes, uma roupa aconchegante com um livro novo. O conforto tem muitos rostos. E entendê-lo como essencial à minha sobrevivência tem sido a única forma de não acabar perdendo ele de vista. Afinal, é fácil negligenciar o conforto em um mundo que constantemente exige que a gente saia da “zona de conforto” e afirma que só existe crescimento no incômodo. Mas nós, pessoas deslocadas que estão sempre achando o mundo um pouco barulhento, cheio, caótico, rápido, áspero demais, com certeza sabemos que só o refúgio que o conforto nos proporciona é capaz de tornar a vida não apenas sustentável, mas de fato vivível.
Li, assisti, encontrei
✷ Assisti (finalmente!) Retrato de uma jovem em chamas e fiquei absolutamente obcecada. Cada cena é uma obra de arte. Sem falar que um filme que contém sáficas, pintura, vestidos de época, mulheres sendo bruxonas ao redor da fogueira e várias cenas no mar não poderia ser ruim em nenhum universo. Fica a recomendação (tem no Prime Vídeo).




✷ O vulto no canto do olho. Esse texto da sobre a morte da sua gata está entre as coisas mais doloridas e bonitas que li recentemente.
✷ Escrever é criar origamis com o tempo.
✷ Sobre ser mais criatura que humana.
Edição número 50 e… uma novidade
Tempos atrás, ensaiei a ideia de uma versão paga da newsletter, mas acabei cancelando depois de algumas edições. Não estava com tempo suficiente para dar conta e achei melhor não pegar essa responsabilidade. Mas agora estou com mais tempo, muitas ideias novas e resolvi tentar outra vez!
Na versão gratuita, seguiremos tendo:
- Texto novo (quase) toda semana;
- Eventuais recomendações de coisas que li, assisti, encontrei;
Já na versão paga (por R$ 7 mensais), além do que já recebe na gratuita, você também vai receber:
- Um texto a mais por mês — que pode ser uma crônica, uma resenha, um texto literário, uma entrevista, etc.;
- Uma lista com os favoritos do mês, que inclui dicas de livros, séries, filmes, exposições, restaurantes, links interessantes, entre outras coisas;
- Sorteio mensal de uma arte minha;
- Envio de outros brindes digitais, como postais, cartela de adesivos, colagens, etc.
- A alegria de saber que está apoiando uma escritora e artista independente num mundo que massacra escritoras e artistas independentes, YEY! 💌
Ainda estou planejando algumas outras coisas bem legais para a assinatura paga (um clube do livro talvez? vamos?), mas, a princípio, é isso. Escrever exige tempo, dedicação (para escrever essa edição, foi um dia; para fazer a ilustração que encabeça o texto, uma madrugada). Apoiar é uma forma de permitir que a gente não seja soterrado pelas exigências cotidianas e continue encontrando brechas para criar.
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Fiquei pensando sobre como a sensação de conforto atualmente parece estar cada vez mais atrelada ao consumo. Não é uma crítica ao texto ou ao que você propõe - eu mesma adoro comprar minhas coisinhas que diminuem o estresse/ansiedade/tristeza rs -, mas é algo que tenho pensado muito ultimamente. Parece estar cada vez mais difícil encontrar conforto ou relaxamento fora da seara de consumo - até para tomar um banho relaxante precisamos de uma lâmpada X, uma caixinha bluetooth Y, um creme de cabelo Z, um sabonete facial A+... Penso que parte disso é reflexo da queda de conexões reais entre pessoas-lugares-situações, que nos levam a consumir as últimas tendências para nos sentirmos mais confortados. No mais, adorei a leitura, e sigo buscando por confortos menos "consumíveis" e mais "experiênciáveis" rs
que edição confortável :) obrigada!