#61 – Uma recusa à solidão
Nutrir amizades, compartilhar o cotidiano, fazer da presença uma prioridade inegociável.
Faz tempo que ando revendo meu conceito de amizade. Provavelmente desde que a não monogamia entrou na minha vida e eu comecei a repensar a importância que a gente dá às relações fora do âmbito amoroso-sexual (qualquer hora quero cutucar mais fundo esse vespeiro, mas fica pra depois). Tenho algumas amizades bonitas com pessoas que amo há dez, quinze anos, pessoas que me conheceram quando eu mesma ainda não me conhecia. No geral, não me considero alguém com boas habilidades para fazer e manter amizades. Sei lá se por viver muito dentro da minha própria cabeça, ou pelas circunstâncias da vida, mas tenho pouquíssimas pessoas — e essas pouquíssimas costumam ser pessoas que entraram no meu círculo de proximidade décadas atrás, quando eu ainda era mais permeável, talvez, mais fácil de acessar. De lá para cá, tivemos: home office, o cotidiano cada vez mais caseiro, a ansiedade cada vez mais pontiaguda, o mundo corroendo os ânimos, a falta de lugares compartilhados, ou seja, circunstâncias pouco oportunas para o nascimento de novas relações.
Lembro de ter visto em algum lugar um gráfico mostrando o tempo que a gente passa com nossos amigos ao longo da vida, e esse tempo costuma ser bem maior na época da adolescência e dos 20 anos. Depois vai diminuindo. No caminho contrário, o tempo que passamos com parceiros amorosos aumenta a partir dos 30. Faz parte, eu costumava pensar. Faz parte ver os amigos com uma frequência cada vez mais espaçada. Faz parte sair uma vez por ano, quando ambos encontram uma brecha nas outras demandas. Faz parte construir uma vida com a pessoa que amamos e compartilhar com ela os momentos mais íntimos, enquanto nossas amizades, mesmo as mais antigas, vão tendo acesso a fragmentos cada vez menores da pessoa que passamos a ser.
Não sei em que momento isso deixou de me parecer inevitável. Mais uma vez, entra o vespeiro: sim, acho que tem muito a ver com a minha experiência com a não monogamia. De repente, me dei conta de que essa mania que a gente tem de se dividir em pares, em núcleos familiares, casal+filho, e tratar esse núcleo como as nossas relações mais importantes, não fazia muito sentido para mim. Eu, que não pretendo ter filhos, e talvez sequer me case, que tipo de vínculo sobra para mim então? O famigerado mas quem vai cuidar de você na velhice, quando não é usado para cobrar filhos de quem não quer, até que tem o seu fundo de verdade. Me preocupo, sim, com a minha versão de 80 anos, mais frágil, inevitavelmente mais dependente. Mas não saber quem vai me amparar no futuro nunca me pareceu um motivo muito válido para casar ou ter filhos (embora eu sinta que, para várias pessoas, a fuga da solidão pareça ser uma motivação bastante aceitável para isso).
Acho que meu sol em aquário gosta mesmo das utopias. E minha utopia atual é: um senso de comunidade. Uma rede de cuidado, incentivo, apoio mútuo. Sabe aquela ideia de envelhecer em uma vila com vários amigos? Um pouco isso. Tenho gostado muito de pensar em uma vida efetivamente compartilhada. Da mesma forma que sonhamos em compartilhar a vida com um parceiro amoroso, só que com amigos. Construir com eles uma vida. Amar os amigos como amamos o amor romântico. Nutrir por eles o mesmo cuidado, preservar a relação com o mesmo afinco. Cultivar o vínculo, estar presente — mais do que isso: fazer da presença uma prioridade inegociável.
Passei os últimos anos esculpindo uma solidão que me parecia impossível de evitar. Estar sozinha era a minha coisa favorita (e a única previsão de futuro que eu era capaz de imaginar para mim). Algo meio Macabéa: “a verdade só me vem quando estou sozinha”. Também sempre me identifiquei com aqueles vídeos de humor que mostram introvertidos interagindo vigorosamente com outras pessoas, mas depois chegando em casa e sentindo um grande alívio por, enfim, estarem sozinhos; e, enfim, sozinhos (e somente sozinhos), conseguirem respirar.
Continuo sendo uma introvertida com dificuldades sociais, mas talvez o avançar dos anos mostre que essa história de viver por conta própria é uma ilusão. De certa forma, acho que muitos de nós gostam de acreditar nessa possibilidade porque estamos mesmo vivendo uma época extremamente solitária. Cada um em seu cubículo, tendo pouco ou nenhum tempo para frequentar qualquer espaço fora do trabalho, enchendo a cara de redes sociais que de sociais têm muito pouco, com uma dificuldade crescente em estabelecer e manter vínculos duradouros. O que sobra, além de se convencer de que estar sozinho é de alguma forma libertador?
Tem uma entrevista da Marília Gabriela em que ela conta que leva uma vida muito solitária, e que tem total consciência de que essa solidão foi consequências das escolhas que ela fez. Eu tenho a mesma consciência. Sou uma pessoa de poucas pessoas por conta de cada evento que deixei de ir, cada mensagem que deixei de responder, cada situação em que optei por não sair de mim para encontrar o outro; um amontoado de minúsculas escolhas que me trouxeram até aqui. Ainda assim, acredito que, como diz o Saramago, “ser não é ter sido, ter sido não é será”. A vida que levo hoje não precisa ser a que vou levar para sempre. E o que eu quero para daqui a 10, 20 anos é outra coisa.
Daí uma das minhas metas de 2025 (talvez a mais difícil, mas também a mais importante): cultivar amizades. Novas e antigas. Cultivar amizades com pessoas que também estejam interessadas em construir uma vida juntas, um cotidiano compartilhado, uma utopia costurada por várias mãos. Pessoas que queiram amizades não do tipo vamos-sair-uma-vez-por-ano, mas amizades de vamos-ali-me-fazer-companhia-num-exame-médico, vamos-comigo-na-Leroy-Merlin-comprar-uma-torneira-que-a-minha-enguiçou, amizades de deixa-que-eu-vou-com-você-naquela-consulta, deixa-que-eu-te-ajudo-a-levar-seu-cachorro-no-veterinário. Amizades que sejam como peças fundamentais na engrenagem do cotidiano, e não contatos que a gente faz de muitos em muitos meses para tirar a poeira do carinho e colocar em dia uma conversa que logo mais vai voltar a ficar desatualizada.
Mais uma vez: fazer da presença uma prioridade inegociável. Minha ideia de envelhecer em uma vila talvez não se concretize, mas que seja possível, pelo menos, fincar os pés nesta recusa (quase política) a uma solidão que nós temos, sim, chance de evitar.
Mudanças pra 2025
Neste período de férias, andei pensando em algumas mudanças que quero fazer aqui na Café com caos. Publiquei bastante coisa no segundo semestre de 2024, praticamente 1 texto por semana, com algumas (poucas) exceções. Ainda assim, manter essa frequência exige bastante tempo e dedicação. Se você tem ou já teve uma newsletter, com certeza sabe o trabalho que dá.
Pensando nisso, por ora, vou fazer alguns ajustes na periodicidade. Vão ser 2 textos enviados mensalmente na versão gratuita da newsletter. Já os apoiadores vão receber 2 textos a mais (e não um só, como era antigamente), além dos brindes digitais disponibilizados em uma pasta secreta no Drive e outros eventuais presentes. O valor vai continuar o mesmo: R$ 7 mensais. Se você quiser se tornar um apoiador, pode clicar no botão abaixo e gerenciar a sua assinatura:
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Me identifico muito, Ma! Talvez eu tenha sol em Aquário e nem saiba! rs mas eu também tenho olhado muito para parte de relacionamentos da vida, foi algo que saiu também na minha revolução solar e fez sentido pois no caminho da terapia notei que me construí como "Chandler" tentando agradar todo mundo e esconder minhas mazelas e necessidades. Revisei o motivo pelo qual eu tinha algumas amizades, o cerne do vínculo e revisitando o lugar dessas pessoas na minha vida.
Lindo texto, além de provocador. Caramba, como reveberou em mim! Sou uma pessoa de pouquíssimas amizades, dificuldade em criar e manter vínculos e com uma sensação constante de fracasso social. E acredito que a responsabilidade seja minha. Talvez por uma incapacidade inerente, talvez, por pura preguiça. Ao mesmo tempo, não sou uma pessoa de redes sociais. Meus principais vínculos atuais foram construídos no trabalho. Enfim, quero pensar seriamente neste ano em abraçar um projeto semelhante ao seu. Quem sabe?