A dor física tem sido bem presente nos meus dias. Desde abril investigando algo que agora ganha os contornos de uma doença crônica, já conto 8 episódios de dor aguda. Eu nunca tinha sentido uma dor tão forte antes e é uma sensação estranha, algo que me coloca numa espécie de fronteira: normalmente fico à beira de um desmaio, com dificuldade de manter os olhos abertos, e as coisas que os médicos falam vão chegando como se fossem flashes ou borrões. Na última vez que fui pro hospital, lembro que, enquanto fazia algum esforço para continuar consciente, na minha cabeça passavam imagens de terras devastadas. Não sei por quê. Grandes pedaços de terra devastada.
Também é muito comum sentir taquicardia nessas horas, como se o meu corpo entrasse numa espécie de modo de sobrevivência. Depois que a adrenalina passa, bate uma ressaca absurda. Essa última ida ao hospital foi numa sexta-feira, e passei o fim de semana inteiro dormindo. Um cansaço imenso despencando sobre o corpo. O grande problema da dor — estou descobrindo agora — é que ela não vem sozinha: ela deixa um rastro. E não falo apenas do cansaço, mas também da memória da dor. Mesmo quando não estou com dor, lembro dela. Penso nela. Tenho medo que ela volte.
Conversando sobre isso com uma amiga que lida com dores crônicas, ela disse: “não deixa de ser um trauma”. Lembrei que tempos atrás li em algum lugar que um trauma é uma cisão. Uma cisão no tempo, no espaço, no corpo. É impossível retornar ao que era antes. Quando volto do hospital, quase sempre volto desorientada, olho pras coisas que eu estava fazendo antes e todas me parecem desimportantes, distantes. Demoro a retomar os planos. Se é que consigo.
Já estou sendo tratada, acompanhada, medicada. A tendência — espero — é melhorar. Aprendi com o médico que a minha falta de serotonina também estava contribuindo para o meu limiar de dor estar tão baixo, o que significa que um estímulo que normalmente o cérebro ignoraria agora estava sendo percebido como uma grande agressão. Tenho aprendido muitas coisas sobre o corpo humano. Outro exemplo: parece que 90% da nossa serotonina é produzida no intestino. Aliás, o intestino e o estômago têm uma grande relação com a saúde mental. Não à toa nós sentimos “borboletas no estômago”, ou ficamos enjoados e com dor de barriga quando estamos ansiosos.
A dor também tem me ensinado algumas coisas sobre não viver esperando a catástrofe. Sei que a qualquer momento posso ter outra crise, e isso me deixou, por algum tempo, em estado de alerta. Os músculos contraídos, emocionalmente encolhida, só esperando o golpe. Como ter ânimo pra fazer qualquer coisa assim? Acontece que o golpe pode vir de muitos lados, e quase sempre, quando vem, é quando não estamos esperando mesmo. Não adianta tentar se precaver. O que posso fazer (e tenho feito) é ouvir os sinais do meu corpo, estar atenta ao que ele diz, trabalhar na nossa comunicação não-violenta.
Meu corpo — que já passou por tanto, que tem passado por tanto — anda me mostrando que há mesmo muitas coisas que não podemos resolver intelectualmente. Agora é tempo de exercitar outras formas de escuta.
Um livro novo
E não é que eu escrevi um livro novo? Julho foi um mês intenso, e parte dessa intensidade foi graças à correria de — entre tretas de saúde e muito trabalho — tentar juntar poemas para um novo livro. Uma loucura, mas deu certo. Meu terceiro livro, chamado Assim começa o esquecimento, enfim nasceu, com uma junção de poemas e colagens. Agora é trabalhar na etapa de publicação. Alguns spoilers:
redução de danos
há noites em que
antes do sono
mastigo restos
de mim mesma
você não entenderia
é preciso desenhar estratégias
manter-se atenta
não cair nas emboscadas
ou caso caia
é preciso entender bastante
o funcionamento do próprio corpo
para administrar flexibilidades
reduzir danos
eu caio muito
há muitos anos
estou acostumada
a coletar pedaços de ossos fazer remendos
lamber fraturas
algumas pessoas ficam deprimidas
do jeito errado
você diz
eu não julgo colapsos
todos os dias bato ponto
na boca do vulcão
autodescrição [1]
sou uma mulher silenciosa
de gengivas inflamadas
que pela manhã pratica
danças facilmente confundidas
com exorcismos
e carrega fomes fundas
que apenas um sobrevivente
seria capaz de entender
tenho o corpo costurado
olhos que só acordam sob
a luminosidade certa
uma inevitável vocação
para a queda
sou uma mulher sobre a qual
eles nunca poderão falar
———— nada
e apenas mulheres como nós
compreenderão o que isso
quer dizer
daqui a pouco eu vou chorar mas ainda não é a hora
cuidar do hematoma
descansar a garganta
deixar que escorra todo o resquício de espera
fincar os pés no solo árido
reconhecer o fim
desmaiar sobre os braços instáveis do futuro
Li, assisti, encontrei
✷ Gostei muito da série Pequenos incêndios por toda parte, disponível no Prime Vídeo. Conversas sobre maternidade, adolescentes se descobrindo, questionamentos sobre lesbofobia e racismo, personagens complexos e tramas envolventes: tem tudo isso. Ainda tem a Kerry Washington sendo maravilhosa. (A série é baseada num livro, que também comecei a ler, mas ainda tô no comecinho.)
✷ Outro amor de série: A league of their own. Também disponível no Prime Vídeo, a história acompanha um time de beisebol feminino nos anos 40. Além de abordar as dificuldades que as mulheres em geral tinham, a série mostra especificamente a realidade de mulheres negras e lésbicas. Assuntos sérios tratados com alguma leveza, a gente ri, chora, fica indignada, mas também com o coração quentinho. Recomendo muito.
✷ Passei boa parte do ano sem conseguir ler nada, daí chegou julho e eu li uns 5 livros de poesia diferentes (pretendo falar mais sobre eles em breve). Agora parece que a leitora em mim ressuscitou e eu quero ler de tudo. Estou lendo (tudo-ao-mesmo-tempo-agora): Pequenos incêndios por toda parte (Celeste Ng); A assombração da casa da colina (Shirley Jackson) e Os perigos de fumar na cama (Mariana Enriquez).
✷ “Não tem nada mais feminino do que ser obcecada por outra mulher.” Ainda não vi Barbie, mas amei esse texto da Gabi.
Deixo meu amor para você, Maíra <3
Suas colagens mexem muito comigo. 🌷 E eu casaria com a Kerry Washington ❤️