#35 – Um trem em movimento
03 de maio de 2018. O Instagram me mostra a memória de um story em que estou falando, risonha, enquanto faço uma tatuagem. No rosto, um focinho e duas orelhas de raposa. Era o meu filtro favorito antigamente. Hoje sinto falta desses filtros bobos de cachorros e gatos e raposas, tão criticados na época, mas tão mais inofensivos que os atuais e suas harmonizações faciais ilusórias. Sem olheiras, rosto mais fino, dentes brancos, nariz delicado e boca bem preenchida e rosada. Encaro essa fantasia de mim mesma sabendo que, se olhar por tempo demais, talvez não consiga voltar ao meu próprio rosto. E não consigo. É rápido e eficaz o canto da sereia. De repente, já não quero ser a eu do espelho, mas a eu que os filtros dizem que eu poderia ser.
Não tenho fotos da época da pandemia. Nada que registre quem eu era na época, como estava o meu rosto ou o meu corpo. Após raspar a cabeça em 2019, tive que passar os longos meses de 2020 encarando um cabelo que crescia espetadamente e me deixava com a cara de quem levou um choque. Nem os filtros harmonizados me faziam gostar do que eu via. Hoje percebo que essa insatisfação ultrapassava o físico e tinha qualquer coisa de um distanciamento de mim mesma. Uma autoalienação. A pandemia nos isolou em muitos níveis. E, no meio daquele período histórico — que, assim como muitos momentos históricos, acabou criando uma espécie de cisão no tempo —, percebi que a pessoa que eu tinha sido até ali já não me representava mais. 2020 foi um limbo. Não sabia o que gostava, o que queria, não conseguia enxergar com clareza os meus próprios contornos.
Enquanto tentava me tatear nessa neblina, fui engordando. Compulsão alimentar, ansiedade, a quantidade de mortos todos os dias no jornal. Engordei pra lá de 30 kg, desconfio que chegue aos 40 kg. Minhas roupas antigas já não me cabiam, mas também não conseguia encontrar novas que me agradassem — e me vestissem. Segui, ao longo de dois anos, sem me olhar no espelho. Não culpava meu corpo mudado. Nem poderia exigir que ele se mantivesse igual num momento em que tudo se transformava. O que me doía era o estranhamento, era estar à deriva, sem qualquer controle sobre os trajetos da minha autopercepção.
No último fim de semana, tirei fotos de corpo inteiro pela primeira vez desde que comecei um processo de reeducação alimentar. Já foram uns 10 quilos perdidos do ano passado pra cá, mas ainda não tinha visto. Não me reconheço. Nem no corpo mais gordo da época da pandemia, nem nesse de agora, que (ainda gordo) começa a perder peso. Ambos me parecem estranhos. Um território estrangeiro. Inacessível até. Dizer que isso se deve a esse estado transitório que meu corpo tem ocupado nos últimos anos — ora aumentando, ora diminuindo de tamanho — não deixa de ser uma verdade, embora todo corpo seja, no fim das contas, transitório. O que me faz pensar que talvez só seja possível me reconhecer se o reconhecimento for também um gesto flexível. Olhar para a minha imagem não como uma fotografia estática, mas como olho para a paisagem através da janela de um trem em movimento.
Ter engordado o tanto que eu engordei nos últimos anos e agora estar vivendo um processo de emagrecimento frequentemente me traz a sensação de estar tentando recuperar algo que perdi — seja o corpo ilusório que já tive, ou o que quer que fosse que esse corpo me proporcionava. Muitas vezes me distraio e acabo movida por essa tentativa de recuperar algo irrecuperável, mas logo lembro a mim mesma que os corpos (vários) que tive no passado não voltam, não existe chance de recuperá-los. Ainda que eu voltasse a ser magra (coisa que não sou há mais de 20 anos e nem pretendo voltar a ser), meu corpo seria um corpo que passou por tamanhos bem maiores e depois retornou à magreza. Um corpo marcado por estrias, peles flácidas, marcas de uma longa trajetória entre os mais diferentes tamanhos. Um corpo que não consegue esconder o próprio passado.
O mesmo vale para o meu rosto, que encaro com estranhamento no espelho, reparando em novas marcas, novas configurações. O mesmo vale para o meu cabelo, que agora tem uma textura levemente diferente da que tinha anos atrás — além de muitos, muitos cabelos brancos (aguardando a cabeça full grisalha antes dos 35). Lendo a edição dessa semana da
, gostei muito desse trecho:Existimos no mundo sem ver o próprio rosto. Mesmo que a gente se veja todo dia no espelho do banheiro, múltiplas vezes e em múltiplos banheiros, parece haver um distanciamento entre esse ato solitário e íntimo e o ato de efetivamente estar no mundo, rodeado de pessoas. As fotos revelam esse “eu” que passeia por aí, e há sempre um assombro nisso.
(Carol Bensimon, nessa edição da Nevoeiro)
De certa forma, talvez o estranhamento com a própria imagem faça parte da nossa existência como seres que: 1) têm consciência de que estão sendo vistos; 2) desejam ser vistos de uma determinada forma; 3) são incapazes, por natureza, de se enxergar, exceto em fotografias e reflexos. Buscamos nas constantes selfies e olhadas no espelho uma espécie de confirmação: eu sou essa pessoa? É assim que me veem? É assim que quero ser visto? E a verdade é que não temos nenhum controle sobre como o outro nos vê. Ainda que as selfies e espelhos digam uma coisa, talvez o olhar do outro — com toda a sua bagagem — nos encare por um outro prisma, que não temos como antecipar ou às vezes até compreender.
Mesmo porque não temos um só rosto. Não temos um só corpo. Como a paisagem do trem em movimento, eles estão em constante transformação, são fluidos, mutáveis, organismos vivos que produzem espinhas, olheiras, manchas, marcas, inchaços, pelos encravados. São organismos vivos que se transformam se os observamos de ângulos diferentes, em dias diferentes, a partir de óticas diferentes. Talvez o erro seja nosso em tentar capturar algo tão vivo e fazer disso uma ideia fechada. Somos e não somos o rosto do espelho. Somos e não somos o corpo das fotos. Para me reconhecer, preciso aprender a, todos os dias, me estranhar primeiro.
Li, assisti, encontrei
✷ Arte com fungos.
✷ Já comentei aí em cima, mas essa edição da Nevoeiro (com participação de Alice Munro) foi realmente muito bonita.
✷ Sucesso feito sob medida, da Aline Valek.
✷ Por uma escrita menos criativa, da Vanessa Guedes.
Tem uma passagem no livro da Amanda Palmer, A arte de pedir, em que ela descreve o artista como uma pessoa que liga os pontos. Gosto dessa analogia, porque a escrita mais emocionante e elucidativa tem esse efeito: fazer uma conexão. Para mim, o artista é quem enxerga e escuta pelas frestas, quem investiga uma inquietação como um detetive canastrão investiga com afinco o assassinato da bela mocinha, quem exerga através das camadas como um super-herói enxergaria através das paredes e quem sente o cheiro daquilo que é invisível para a maioria das pessoas, como um cão farejador.
A voz das mulheres
Se você me segue no Instagram, já deve ter me ouvido falar desse projeto tão bonito do qual eu participei recentemente, como revisora e também autora convidada. O livro Versão brasileira: a voz da mulher é uma coletânea de poemas escritos por autoras mulheres e brasileiras, a partir do (complexo) tema: independência.
Organizado pela Diana de Hollanda e produzido pela Marina Hodecker, o projeto contou ainda com um vídeo muito bonito, em que todas as autoras convidadas falam um pouco sobre o seu processo de escrita e do que significa ocupar esse lugar de escritora.
Tudo isso pra dizer que: o vídeo do making-of agora está no YouTube e você pode assistir aqui. Infelizmente, eu estava no ápice de uma crise de sinusite quando gravei, então perdoem a voz fanha e foquem no que é dito. Já o livro está disponível na Amazon (ou você pode baixar gratuitamente no perfil da Teatro da mente).
Um agradecimento
Muito obrigada a todas as pessoas que participaram do questionário que incluí na última edição. Vocês me ajudaram demais, e em breve teremos uma versão premium-remodelada da Café com caos. Não se preocupem, pois a versão gratuita seguirá existindo normalmente, mas vai ser interessante poder trazer algumas coisas diferentes para os apoiadores. Em breve, trarei novidades sobre isso.
eu adoro como vc começa escrevendo sobre uma coisa muito pequena, num comentário quase corriqueiro, e vai construindo o alicerce para falar de algo grande.
te mandando abraço apertado daqui.
e muito obrigada por linkar a Segredos, me sinto mega lisonjeada.
esse seu texto conversou comigo de tantas maneiras! eu tive que trabalhar por muito tempo em terapia essa questão de corpos antigos não voltarem e é incrível que só quando estudei anatomia na faculdade que consegui entender que nosso corpo é tão lindo e único que só consigo sentir gratidão pelo meu, apesar de todos os dias ter que passar por esse processo de "não reconhecimento" também.
acho que o "é assim que me veem?" é o que mais assusta a gente. mas uma coisa que aprendi é que os outros tendem a olhar com mais carinho pra gente do que a gente mesma. nós que estamos com as 500 pedras nas mãos, prontas pra atirarmos contra nós mesmas.