#41 – Improváveis regenerações
Sobre restinhos de sangue, serpentes entendidas de sobrevivência, uma festa, uma amputação e as dificuldades de ressuscitar.
Vou a uma festa. Revejo uma amiga que não via há anos. Bebo quatro caipirinhas. Fumo três cigarros. Recebo um áudio de 20 minutos que me atravessa o estômago. Penso muito no áudio. Quero responder o áudio. Desisto. Gosto da menina que me empresta o isqueiro. Trocamos muitos olhares. Ninguém faz nada. Digo à minha amiga que naquele dia me sinto triste. Ela responde: tá todo mundo mal. Falamos sobre terapias, medicamentos e psiquiatras. Mais uma caipirinha. Dou risada ouvindo o coro de mulheres cantando aos berros chupar xoxota é uma coisa linda. Outra amiga me manda mensagem dizendo que uma amiga sua está na mesma festa, que eu deveria ir beijar ela. Minha coluna dói. Penso que estou velha demais para essas coisas. Penso que, por outro lado, é bom estar aqui, e não em casa. Penso que trocar olhares com a menina do isqueiro é o suficiente para me lembrar por que preciso estar na rua. Por que quero estar na rua. Mais do que nunca, quero estar na rua, nas esquinas, nos bares, nas festas, nos lançamentos, nos encontros, nos lugares mais inusitados, esdrúxulos, absurdos, conversando com estranhos, trocando olhares com mulheres cujo nome não vou chegar a descobrir, encostando e sendo encostada, movendo e sendo movida.
Atravesso uma cidade fantasmática no retorno para casa. Um ou outro bêbado pela rua, pessoas dormindo em calçadas iluminadas pelos letreiros dos bancos. Um gosto de resto na boca. O rímel borrando as pálpebras. O motorista do Uber quer conversar, parece revoltado porque as pessoas não leem as placas de trânsito. Estou mergulhada em um tipo de cansaço que mistura contemplação à melancolia. Se estivesse mais bêbada, teria perguntado: o senhor acha que uma pessoa com transtornos mentais pode ser amada? O senhor acha possível amar pessoas tão pesadas sem que esse amor vire um fardo? O senhor já largou a mão de alguém porque ficou desconfortável continuar segurando mesmo sabendo que ela precisava que o senhor continuasse?
Eu já. Por um minuto, penso que isso ameniza. Já larguei muitas mãos, entendo que larguem as minhas. E sinto vontade de pedir desculpas aos donos das mãos que larguei. O senhor acha que existe caminho?
Acordo cansada no dia seguinte. Não é bem ressaca, embora se pareça com isso. Choro abraçada com a cachorra embaixo do edredom. Ela lambe minhas lágrimas, como quem diz que não se importa que eu seja doida, vai continuar aqui. Mas resolvo as coisas com o que parece ser o meu novo coping mechanism: coloco uma roupa e saio de casa. Quase não me importa aonde ir. Entro num estúdio e faço um piercing. Corto o cabelo. Ando por diversas ruas, sob o sol, até ficar suada. O piercing novo lateja, mas a dor do momento em que a profissional atravessa a agulha na pele é justamente o que eu precisava. Um instante rápido em que o meu corpo entra em suspensão, a respiração para por um milésimo de segundo, como se eu estivesse fora de mim. Minha cabeça — sempre tão ruidosa — entra em um silêncio sepulcral, toda atenta ao que está acontecendo na carne. E o que está acontecendo na carne, embora tenha sido intencional, soa ao meu corpo como uma ferida. Olho no espelho: amei, ficou lindo! A orelha vermelha com restinhos de sangue agora tem um piercing em forma de serpente.
Volto para casa escutando Lizzo. I just took a DNA test, turns out I’m 100% that bitch, even when I’m crying crazy. Anoto no caderno: tenho tido muitas coragens. Pois não posso esquecer. Embora às vezes esqueça. E fico pensando que quem me olha aqui, em carne viva, me derramando com tanta frequência, embrulhada em compulsões, hipérboles e angústias, talvez não saiba muito bem de onde eu vim. Brinco com frequência — fã de horror que sou — que voltei do mundo dos mortos. No ano passado, no ápice de uma crise de depressão, escrevi: “do lugar onde eu vim parar, ninguém volta”. Mas voltei. Não a mesma. Outra. Talvez qualquer coisa de mim tenha precisado mesmo ficar lá, feito o cara de 127 horas que precisou amputar o próprio braço para sair vivo.
Não sei exatamente o que perdi. Ou ainda estou perdendo. Às vezes penso que o processo de amputação ainda está acontecendo. No ano passado, escrevi um texto inteiro sobre perder a terceira perna. Tudo me arde, me encosta, me comove, me fascina, me assombra, me dói, porque parece que, sim, estou mesmo existindo com a pele em carne viva. Estou mesmo existindo como uma carne viva — de certa forma, reaprendendo a estar viva, depois de um bom tempo certa de ter me tornado um fantasma. Estar viva é um susto. Uma vertigem. Às vezes, odeio. Às vezes, tudo me vem com tanta força que sinto vontade de fazer um coquetel de remédios para dormir só para passar umas horas com a cabeça desligada. Às vezes, quero sair gritando pela rua “eu tô viva, caralho” com uma empolgação que só entenderia quem já sentiu a aridez de habitar um corpo que não responde a mais nada.
Tempos atrás, rolou uma brincadeira no Twitter que era para gente responder à pergunta “quem é você?” sem usar nome, profissão, idade ou estado civil. Eu escrevi: mulher, sobrevivente, bicho, mergulho, voraz, sangue, riso, fome.
Creio que ainda sou todas essas coisas. E que elas, inclusive, se entrecruzam. Mergulho frequentemente no sangue e, no meio dele, encontro o riso. Sinto fomes vorazes que apenas uma sobrevivente seria capaz de sentir. Mas, para além de todas essas coisas, me agrada, agora, a ideia de ser um animal capaz de resistir às condições mais inóspitas. Animais que trocam as próprias peles, se refazem, aprendem na marra a morrer para continuar vivendo.
Penso na palavra “fragilizada” que surgiu no meio do áudio que não cheguei a responder, mas hoje, andando pelas ruas sob o sol de um domingo, cantando Lizzo, percebo que: não, não me sinto frágil. Me sinto exposta, vulnerável, dolorida, permeável. Mas também faminta, feroz, firme, visceralmente viva. Como a orelha com resto de sangue que agora abriga uma serpente capaz de experimentar as mais improváveis regenerações.
o brinco ficou muito bonito mesmo :)
sempre bom te ler.
Lufada de energia vital! ❤️