“Estou me lembrando. Testemunho minhas lembranças. Preencho meus esquecimentos com literatura. Com ficção. Acontecimentos que realmente aconteceram? Onde estão eles?”
“As nossas histórias, muitas vezes, são falaciosas, modeladas pelo tempo, pela mente, pelo desejo e pelas frustrações. Mas posso, a partir da literatura, fantasiar minha vida. Posso recontá-la como Dom Quixote ou como Forrest Gump. E, remodelando minha memória, remodelaria meu passado.”
(Trechos de Antiterapias, de Jacques Fux)
Sempre gostei muito de autoficção. Já falei sobre o assunto por aqui. Gosto dessa escrita que fica no limbo, no limiar entre o que entendemos como verdade e o que entendemos como criação literária. A Anna Faedrich diz em um artigo¹ que a autoficção pressupõe um pacto ambíguo com o leitor — diferente do pacto ficcional e do pacto autobiográfico. Enquanto no ficcional fica subentendido para o leitor que nada do que está sendo narrado tem um compromisso com a verdade, no autobiográfico acontece o oposto: a expectativa é que o autor seja fiel aos acontecimentos. Já a autoficção precisa da ambiguidade para funcionar, posto que rompe com o princípio da veracidade, mas não adere integralmente ao princípio da invenção. É, portanto, um gênero que só opera nesse território enevoado, em que não conseguimos discernir com precisão o que é literatura e o que é realidade.
Por outro lado, penso em Carrie Bradshaw, uma das minhas primeiras referências juvenis de escritora que gosta de usar a própria vida como tema. Lá no alto dos anos 2000, quando eu era adolescente e acompanhava Sex and the city, lembro de me perguntar como as pessoas que conviviam com a Carrie deviam lidar com a ideia de ser parte do que ela escrevia (afinal, ela escrevia sobre a própria vida e, se eles estavam na vida dela, inevitavelmente estariam também na escrita). Carrie não fazia autoficção. Suas colunas estavam em revistas ou jornais, pelo que me lembro, e obedeciam à lógica das crônicas pessoais que refletem sobre acontecimentos vividos. Ainda assim, como qualquer escrita, estavam também sujeitas aos preenchimentos de lacunas com material ficcional, além das eventuais deformações da realidade (narrar um fato é sempre narrar como esse fato se deu sob uma determinada perspectiva).
Aqui no Substack, tenho acompanhado muitas escritoras que seguem caminhos similares, fazendo da própria vida a substância para essa escrita semanal que navega entre os espaços da verdade e da ficção. Embora recentemente tenha rolado um papo de que a crônica morreu, o que vejo por aqui é o oposto: a newsletter se tornou o espaço perfeito para que a crônica se desdobre em todas as suas infinitas possibilidades, entrelaçando vida e literatura como nenhum outro gênero faz tão bem.
Ironicamente, ainda que eu acredite nisso e goste tanto de acompanhar escritoras que seguem esse caminho, muitas vezes já pensei que a minha newsletter talvez não passe de um exercício de diário tornado público. Talvez seja mesmo. Não sei. Quando falo sobre o que escrevo, raramente uso a palavra “crônica”. Gosto de dizer que escrevo textões sobre o caos da vida, divagações sobre o que me acontece, o que não me acontece, o que poderia ter acontecido, o que só aconteceu dentro da minha cabeça. Pegar todos esses acontecimentos e não-acontecimentos nas mãos, usá-los como linhas para costurar textos que tentam responder às minhas próprias perguntas, mas que, na maior parte das vezes, só criam mais perguntas: é isso o que gosto de fazer por aqui. Não tenho compromisso com a verdade. Nem com a ficção. Pelo contrário, gosto de transitar entre esses dois territórios, esmaecer as fronteiras que os separam.
Quando penso nas minhas newsletters favoritas, percebo que muitas também se encaixam nessa proposta. Nunca sei se estão falando de coisas que aconteceram ou não, nunca sei o que é realidade e o que é criação, que parte daquilo de fato aconteceu e que lacunas foram preenchidas com invenções. Gosto de não saber, porque, no fim das contas, não me interessa definir se os textos são reais ou não. Me interessa aonde eles me levam.
E talvez exista algo de importante nesse gesto de narrar a si mesma. Especialmente para nós, mulheres, que sempre tivemos as nossas histórias contadas, com pouca chance de pegar os acontecimentos nas mãos e pensar no que, afinal, gostaríamos de fazer com eles. A nova crônica é digital e feminina, como disse tão bem a
, e me parece que não é por acaso. Nós, que aprendemos a ocupar a internet porque muitas vezes não tínhamos espaço nos meios tradicionais, estamos, enfim, tendo a oportunidade de fazer desse um lugar de autonarrativas. Estamos contando o que queremos contar — com direito a verdades ficcionalizadas ou ficções com fundo de verdade, tanto faz. Estamos narrando novas histórias sobre nós mesmas, a partir do que desejamos narrar.Se a crônica masculina está morta, eu sei lá. Mas a voz feminina por aqui me parece mais viva e efervescente que nunca.
¹ O nome do artigo é: “O conceito de autoficção: demarcações a partir da literatura brasileira contemporânea”
Li, assisti, encontrei
✷ Vivemos uma epidemia de protagonismos? Sim, e ninguém aguenta mais.
✷ A leitura como religião.
✷ Sobre pequenas grandes transgressões. Gostei muito dessa edição da
✷ No último fim de semana, me distraí vendo Heartstopper e: que série gostosinha. Meninos adolescentes se apaixonando e se descobrindo fora da heterossexualidade compulsória, sem tragédias, só aquela delicinha juvenil. Bom demais.
✷ Também assisti Severance, que é basicamente o oposto do que acabei de falar sobre Heartstopper. Uma série absurda, um tanto incômoda, consideravelmente debochada, que levanta reflexões desconfortáveis sobre a nossa relação com o trabalho e fica ecoando na cabeça por horas depois de assistida. Me encontro simplesmente desesperada pela segunda temporada. (Para quem não tem Apple TV+ como eu, fica a dica: dá para ver a primeira temporada no Stremio.)
Alguns experimentos com linhas, tecidos, papéis e palavras que tenho feito por aqui. Ando postando os resultados dessas experimentações lá no Instagram.
Caraca, pensar que o que leio por aqui (e que por vezes tento fazer) é um tipo de crônica fez um buuum na minha cabeça
Autoficção é o que eu tenho mais gostado de ler. Só queria dizer que adoro essas suas experimentações visuais! E a prepotência que é declarar o fim de um estilo literário inteiro, né? Uó! Noto o quanto a crônica é de fato mais feminina que nunca, mas a gente sempre colocou as mulheres numa posição inferior nesse contexto - Martha Medeiros sempre vai ser considerada autora para mulheres, por exemplo. Talvez por isso certos autores nem fiquem sabendo que a crônica feita por mulheres (e para todos) sobrevive muito bem. É cada uma...