Perdi algumas pessoas pro suicídio ao longo dos anos. Me incomodava, entre muitas coisas, que não se pudesse nomear as coisas. Ninguém fala abertamente daqueles que se matam. É tudo nas entrelinhas, subentendido, o suicídio se deduz a partir da falta de outras causas para a morte, que, se existissem, teriam sido anunciadas. Perdi algumas pessoas pro suicídio ao longo dos anos e penso nelas com frequência. Em certos momentos, quando a depressão segura o meu pescoço com muita força, é com elas que converso, é só com elas que desejo conversar.
Talvez porque conversar com os vivos sobre querer morrer acabe sempre em certos becos sem saída. Entendo o desconforto. Entendo o não-saber-o-que-dizer quando alguém te confessa esse desejo de morte. Na minha experiência, as pessoas costumam ir por alguns caminhos diferentes: às vezes, levam na brincadeira, saem pela tangente; às vezes, ficam quase ofendidas, como se você fosse uma ingrata, alguém que recusou um presente muito importante; em outros momentos, entram em um leve pânico, como se a confissão de morte de repente tornasse elas cúmplices ou exigisse delas determinada atitude (conforme compartilho o desejo de morte, subentende-se que quero ser salva, que espero que aquela pessoa me dê um bom motivo para viver).
Também tive amigos que não souberam lidar e simplesmente se afastaram. De toda essa história, lembro de sair com a sensação de que nada pode ser feito para prevenir suicídios se a gente sequer consegue falar abertamente sobre a vontade de morrer. O que é até irônico em uma época em que bordões e memes como “queria estar morta” pipocam pelas redes sociais. Lidamos com humor para não ter que encarar com seriedade aquilo que é desconfortável demais. É mais fácil pensar que é só uma piada. Quando raramente é.
Pensei muito nos suicidas nessa minha recente viagem a São Paulo. Dez anos atrás (quando fui lá pela última vez), me hospedei no mesmo hotel, e foi ali na entrada que marquei um encontro com uma amiga de internet com quem passei o dia, entre passeios em livrarias, conversas e risadas. Anos depois, estava na UFRJ quando recebi a notícia de que ela tinha se matado. Pensei muito nos diversos posts que ela fazia, sobre estar deprimida ou cansada ou não aguentar mais. Me culpei por não ter prestado tanta atenção, por ter estado distraída demais com as minhas próprias questões (e nós estamos, quase sempre, distraídos demais com as nossas próprias questões).
Mas pensei em suicídio quando estava em São Paulo nesse último final de semana também porque me lembrei de setembro do ano passado, talvez uma das épocas mais áridas da minha vida. Época em que me sentia engessada, endurecida, sem qualquer resquício de vida. Escrevi muitas vezes sobre ser um fantasma, sobre me sentir um resto de mim mesma, uma casa em ruínas. Escrevi sobre não encontrar o caminho de volta, sobre ter cruzado uma linha que talvez fosse impossível retornar. Cantava, com frequência: “I was dead when I woke up this morning and I’ll be dead before the day is done.”
Agora, em São Paulo, transitando por diferentes lugares, conhecendo e reconhecendo pessoas, tendo ótimas conversas, trocas, abraços, beijos, caminhando sozinha por essa cidade que pulsa enlouquecida, lembro de me sentir viva como há anos não me sentia. Aproveitei para fazer a leitura do meu mapa com a Júlia de Carvalho Hansen (que recomendo fortemente) e ela confirmou o que eu já intuía: alguma coisa endurecida estava mesmo se dissolvendo em mim. Abertura era a palavra-chave. No último dia da viagem, um domingo, fui andando pela Paulista, ouvindo as bandas que tocavam, vendo as pessoas que dançavam, passando por artistas vendendo suas artes, e por casais, crianças, cachorros, bicicletas, pernas de pau, patins, cerveja, o sol forte da tarde deixando tudo ainda mais vivo, aquela mistura caótica borbulhando, tanto movimento, tanta pulsão, tanta faísca, que eu sentei no meio-fio e comecei a chorar. Comecei a chorar porque não lembrava mais o que era estar viva. E descobri que era bom. Apesar de tudo, era bom. Voltar a me sentir potência, voltar a me olhar não como uma casa em ruínas, mas em construção. Voltar a pensar: “eu ainda tenho muito o que fazer aqui. Que bom que decidi ficar”.
Acabou que uma moça desconhecida me viu chorando e parou para saber se estava tudo bem. Eu disse que sim, que na verdade eu estava muito bem, que aquele era um choro de alívio. Ela me deu um abraço forte e foi embora. Peguei meu voo ainda pensando nos suicidas. Uma frase se formando enevoada na garganta: eu queria que vocês tivessem ficado. Embora eu saiba — é claro que sei — que há sempre muitos motivos para não ficar. Motivos que às vezes falam mais alto naquele determinado momento. Ainda assim, aqui, agora, sentindo mais uma vez que existem caminhos viáveis, que é possível — inclusive — inventar caminhos, encontrar brechas, cavar passagens, penso que insistir em ficar talvez seja uma aposta que vale a pena fazer. Por ora, aposto com gosto em continuar. Ainda há tanto que eu quero ver.
Outras coisas
✷ E não é que eu saí do armário bem bonita no dia da visibilidade bissexual? Apesar disso, tenho pensado com frequência na diferença entre as dinâmicas heterossexuais e as dinâmicas entre mulheres — e também em como tem me interessado muito mais as dinâmicas entre mulheres. Qualquer hora escrevo sobre isso por aqui também.
✷ Não tenho nem palavras pra descrever tudo que São Paulo me deu em tão pouco tempo, então fiz um vídeo. E também postei muitas fotos. E mais fotos (com direito a textão). E estou bem animada pra revelar também as fotos que fiz com a câmera analógica (que os deuses dos fotógrafos amadores me ajudem a não ter ferrado com o filme inteiro).
✷ Comprei poucas coisas em SP, mas uma delas foi o Voladoras, da Mónica Ojeda, edição em português de Las Voladoras, que acabou de sair aqui pela Autêntica Contemporânea. Li esse livro em espanhol e foi aí que começou a minha obsessão pela Mónica (que culminaria numa obsessão completa quando li Mandíbula), mas, como mi español es muy ratata, decidi comprar também a versão traduzida para reler. A Mónica vai estar na Flip e é provavelmente quem eu estou mais animada para ver.
[Se essa edição da newsletter te encontrou num momento em que a depressão anda pesada demais para carregar, espero que você procure ajuda. E decida continuar por aqui mais um pouco. Nunca se sabe quando a gente vai cruzar uma esquina capaz de mudar tudo.]
que bom é te ter aqui <3
Tão bom ler vc 💕👏 Obrigada por continuar aqui, colocando em palavras o sentimento de tantos 😘