#36 – Nove resmungos sobre o amor
1. Já faz alguns anos que me aposentei do amor. Uma aposentadoria precoce, dizem, aos 26. Mas o amor me parecia um lugar desconfortável desde os 15. Fenômeno esquisito que me arrancava de mim mesma, atropelava meus planos e tentativas de controle, me distraía e arrastava a uns lugares distantes, muitas vezes incompatíveis com os cronogramas que eu estabelecia para mim. Estar apaixonada era assustador. Mas, como os fãs de montanha-russa que quase infartam e cinco minutos depois estão na fila para entrar no brinquedo outra vez, eu voltava. Voltava obsessivamente. Passei uns bons anos viciada em me apaixonar. O depois não me interessava tanto. O que eu queria era o momento exato da falta de fôlego, a suspensão temporária do tédio, o corpo aceso e borbulhante.
2. Anos atrás, uma amiga desabafou: “sempre que estou apaixonada, me sinto roubada de mim mesma”. Eu também. Quando termina, é triste, mas não deixa de ser um alívio. Posso voltar a ser só minha.
3. Entre as muitas coisas que me fascinam no amor, acho que gosto, em especial, de perceber os começos. O momento em que acontece o deslumbramento. Os feitiços mútuos, invisíveis a quem está de fora. O crescimento da voracidade. Quando era adolescente, achava muito curioso que de repente os adultos quisessem, sofregamente, enfiar a cara uns nos outros — e que, muitas vezes, perdessem a compostura no processo. Com facilidade, esqueciam datas, compromissos, etiquetas sociais, como se estivessem, de fato, sob uma espécie de hipnose. Demorei a entender que há qualquer coisa de animalesco na paixão. Uma possessão demoníaca teria mais delicadeza ao tomar um corpo. Já a paixão, quando vem, gosta de nos lembrar que o nosso corpo é, no fim das contas, um corpo de bicho — imune a racionalizações e tentativas de controle.
4. Há muitas coisas em jogo no amor. Demandas, traumas, validações sociais, o lugar que ocupamos no mundo (e também aquele que pensamos ocupar). Parece fácil — especialmente em certos modelos de relacionamento, que incluem pessoas pertencentes a determinados grupos — transformar o espaço afetivo numa disputa de poder. Um campo de batalha, com movimentos de ataque e defesa, estratégias sorrateiras e um constante estado de alerta. Por muito tempo, pensei que o amor era isso, algo como o clipe de Elastic heart, da Sia. Por muito tempo, amar foi sinônimo de tentar esconder feridas e afiar as garras para o caso de precisar usá-las (quase sempre, era).
5. Hoje, folheando um caderno antigo, encontrei uma anotação que fiz aos 23: “amar demais é a minha forma de não amar”.
6. Conforme leio sobre não monogamia e outros modelos de relacionamento, começo a repensar ainda mais o imaginário de amor romântico que aprendemos há décadas. Observo à distância, com cautela (talvez ainda cética), mas me interessa acreditar em um campo afetivo que pode, afinal, ser construído como um espaço de descanso, em que as vulnerabilidades são acolhidas como acolheríamos um cachorro que apanhou diversas vezes e agora precisa de paciência para voltar a confiar em mãos humanas. Um espaço em que não precisamos nos defender uns dos outros. Um espaço em que não precisamos estar sempre conferindo a saída de emergência.
7. A amiga que me confessou se sentir roubada de si mesma agora está casada. Não converso com ela há anos. Imagino que o roubo tenha se transformado em outra coisa.
8. Para se apaixonar, também é preciso estar aberto. António Ramos Rosa escreveu: “Um encontro é sempre um início de universo.” Apaixonamentos são feitos de muitas novidades. Passo a conhecer as músicas que ela escuta, talvez aprenda a cozinhar as batatas como ela cozinha, incluo seus hábitos no meu cotidiano, conheço novas ruas, novos livros, novas práticas, novas formas de enxergar o mundo. E, da mesma forma, empresto a ela os filmes que amo, minhas referências, manias, meu vocabulário. Um apaixonamento são dois rios que se misturam. É preciso troca. É preciso estar disposto a ouvir o idioma do outro. É preciso estar disposto a ensinar um pouco do seu.
9. Desde que abandonei o amor, pude fazer muitas coisas com o meu tempo livre. Mesmo as empolgações mais fortes, com os mais diferentes assuntos, não alcançam a urgência que só um apaixonamento é capaz de evocar. Nada tem me tirado de mim. O que é uma pena. Às vezes, tudo o que uma pessoa precisa é sair de si.
Li, assisti, encontrei
✷ Listinha de cafés paulistanos. Já guardei o link pra quando estiver por lá.
✷ Não comprei muita coisa na book friday da Amazon, mas alguns achados me pareceram bem interessantes: Caderno proibido, da Alba de Céspedes, está saindo por R$ 42,90 o livro físico e R$ 19,90 o e-book (esse foi um dos que comprei, ando curiosa para ler desde que vi a indicação da
✷ Enfim, terminei Breaking bad e entendi por que a série é tão aclamada. Gosto muito de narrativas que exploram a complexidade dos personagens, e essa faz isso particularmente bem. Agora comecei Better call Saul, mas confesso que, por enquanto, não está me pegando muito. Talvez eu migre pra Fleabag (pelo visto, estou decidida a ver todas as séries antigas que todo mundo já deve ter visto, menos eu).
sair de si para encontrar novos rios ❤️
sei não, vc pode ter desistido do amor, mas o amor não desistiu de vc. vejo ele nas palavras por aqui o tempo todo.
lindo texto. grande abraço!
"Nada tem me tirado de mim. O que é uma pena. Às vezes, tudo o que uma pessoa precisa é sair de si.", já está no meu bloco de notas. Obrigada.
Muitas vezes as amigas vêm com conselhos não solicitados e racionais quando tudo que eu quero é conscientemente sair um pouco de tanto eu.