1. Ela tem os cabelos longos e vermelhos, pintados com tinta de farmácia. Dança balé, fuma cigarros estranhos, só escuta bandas que eu nunca ouvi falar. A gente se conhece na aula de teatro, eu tenho quatorze anos, um cabelo virgem e um e-mail da Hello Kitty. Minha amiga sussurra no meu ouvido: “ela é bi”. O que é isso? O que é bi? “Ela fica com meninos e com meninas.” Ué. Isso existe? Ninguém nunca me falou.
2. Eu tenho quinze, ela deve ter uns vinte e poucos. É minha professora de dança. Não sei em que momento começo a reparar na forma como o seu corpo se move, parecendo um rio. Dizem que ela namora um cara, eu não sei quem é. Um dia, vou à festa de uma amiga e a encontro no banheiro feminino. Ela pergunta: “sabia que hoje em dia as mulheres podem ter filhos sem precisar dos homens?”. Fico nervosa e saio.
3. “É só ela”, digo pra terapeuta, “ela é a minha exceção. É a única”. “E por acaso ela não é uma mulher?”, a terapeuta pergunta.
4. Todos os dias ela guarda o meu lugar pra que a gente sente uma ao lado da outra na aula. Todos os dias ela me acompanha andando até a minha casa, mesmo que sua casa fique do outro lado. Penso que ela é uma ótima amiga, mas na noite de Natal ela me liga dizendo: “eu acho que nós podemos ser mais que amigas”. Em pouco tempo, a ideia de beijá-la parece começar a fazer sentido.
5. A moça da locadora tem uma tatuagem com dois símbolos femininos ligados. Ela me indica filmes clássicos e passamos horas conversando sobre cinema. Em algum momento, ela me olha com cumplicidade e indica um filme sobre duas mulheres que se apaixonam. Seus braços são tatuados, a orelha cheia de brincos, o cabelo curto e preto. Fico na dúvida se quero ser como ela ou se o que quero é, na verdade, ela.
6. Já devo ter tomado mais de sete copos. Estou desolada porque a menina dos cabelos vermelhos foi à festa com o namorado. Misturo as bebidas mais aleatórias, quero me aniquilar na pista de dança até não precisar entender mais nada. Sento na calçada, exausta, e ela chega perto de mim. Tem o cabelo loiro, sardas nas bochechas. Quando dou por mim, estamos nos beijando dentro do banheiro e o segurança bate na porta avisando que a festa já acabou.
7. Não sei como vim parar aqui. Estava com uma amiga no shopping, mas ia rolar um evento e a gente não sabia. De repente, estou vendo um show da Zélia Duncan. Minha amiga precisa ir, eu fico lá mais um pouco. Tenho dezessete anos e me sinto abrir ouvindo Zélia cantar: benditas coisas que não sei, os lugares onde não fui, os gostos que não provei, meus verdes ainda não maduros, os espaços que ainda procuro, os amores que nunca encontrei. Quero me encorujar dentro da voz dela. Alguma coisa se dissolve em mim.
8. Ela tem o cabelo curto e um olhar aconchegante. Acabo de entrar na faculdade, estou insegura e enclausurada em mim mesma. Tenho 18, ela tem 35. Quase toda semana converso com ela depois das aulas. Trocamos indicações de livros e músicas, falamos sobre arte, Clarice, vida, ela me envia e-mails bonitos e eu respondo com confissões súbitas, como se não fosse minha professora. Seu nome é um nome que eu nunca ouvi antes, todos os dias seguro ele na ponta da língua, feito um segredo.
9. Nós nos conhecemos em uma comunidade no Orkut. Ela tem um nariz de pássaro e uma voz amadeirada. Conversamos por escrito, por áudio, nos vemos pela câmera do MSN. Junto minhas economias e planejo ir a São Paulo só pra encontrar com ela. Enquanto não acontece, ouço Tegan and Sara no repeat e desenho seu rosto nas páginas dos meus cadernos.
10. Lésbica, ela diz, e é uma palavra tão bonita em sua boca, parece imensa, encorpada, acesa. Nós trabalhamos juntas em uma livraria, e às vezes ela me arrasta pro estoque e me beija até eu esquecer que estou trabalhando. Sou demitida. Os beijos ficam lá, escondidos entre os livros.
11. Sinto que a voz dela falando sobre a literatura portuguesa é um dos sons mais bonitos do mundo. Suas mãos são delicadas, ela é toda sutileza e suavidade. Eu, bruta, tenho vontade de engolir sua formalidade. Esqueço que é minha orientadora. Enquanto ela fala sobre a minha monografia, eu penso em fazer como nos filmes, empurrar toda a louça da mesa pra longe, pular sobre ela, beijá-la com ferocidade como se fosse o último dia do mundo.
12. Conversamos pela internet. Ela anuncia diretamente: “você me interessa”, e sua coragem vertiginosa me deixa hipnotizada. Em um café dentro de uma livraria, passamos horas entre abraços e risos e beijos. Dois homens em mesas próximas estão claramente incomodados. Saímos do restaurante e andamos pelas ruas do Leblon de mãos dadas. No ponto de ônibus, um outro homem faz um comentário e sinto medo. Mais tarde, penso que não queria ter largado a mão dela quando ele se aproximou.
13. Respondo às outras questões e deixo aquela por último. Depois volto, releio, repenso, me irrito. Não sei qual é a necessidade dessa pergunta nesse formulário (embora, sim, racionalmente eu saiba tudo sobre a necessidade dessa pergunta em muitos formulários). Passeio com a caneta sobre as palavras: orientação sexual. Tenho vontade de gritar, dizer que não quero responder nada. Mas respondo. A caneta treme um pouco na minha mão. Quando saio, passo pelo espelho e encaro meu próprio rosto. Ainda há muitas pontas soltas, mas parece que uma inquietação antiga acaba de ser respondida. Respiro fundo e meu peito se alarga. O dia cheira a alívio.
Queria ter enviado esse texto ainda em setembro, mês da visibilidade bissexual, MAS até ontem eu estava engolida pela mistura de Correria & Desespero que foi a inscrição para o doutorado. Com sorte (e considerando que eu não tenha deixado de anexar nenhum documento importante), o processo ainda vai continuar até novembro, então mais correrias me aguardam. Mas, por ora, sigo feliz por ter conseguido terminar essa primeira etapa.
Creio eu que uma coisa que une as experiências de mulheres que gostam de mulheres é esse sentimento frequente de que estamos prendendo a respiração, não sei. Textos como o teu aliviam demais esse sentimento. Muito obrigada por compartilhar :)
tô aqui meses depois deste texto ter sido publicado, imaginando que a sua atenção esteja voltada para o doutorado. nunca vivi, mas (em certa medida), entendo. espero que você faça um passeio porque aqui de novo qualquer dia desses... foi bonito sentir um pouco das suas emoções aqui do outro lado da tela.