#53 – O que sobra para as mulheres velhas?
Sobre A Substância, envelhecimentos e corpos monstruosos.
“Os homens velhos comandam o show, eles apertam os botões, fazem as guerras, fazem dinheiro. No mundo dos homens, o mundo dos homens velhos, os homens jovens correm e correm e correm até cair, e algumas mulheres jovens correm com eles. Mas as mulheres velhas vivem nas rachaduras, entre as paredes, como baratas, como ratos, um sussurro, um guincho.”
(Ursula K. Le Guin)
Todos os dias sou tomada por uma sensação asfixiante de estar prestes a perder o meu prazo de validade. Aos 34 anos. Como se tentasse me equilibrar em um chão que vai se tornando mais e mais íngreme, cada vez mais inclinado, de forma que eu tento com esforço me manter em pé, mas sei que, inevitavelmente, em algum momento, muito em breve, vou cair. No começo do ano que vem, faço 35 anos, o que significa que estarei oficialmente nessa linha divisória entre os 30 e os 40. A partir daí, estarei me aproximando a passos curtos das quatro décadas. Em outras circunstâncias, em outros mundos, não significaria grandes coisas, uma mulher de quarenta anos é uma mulher com muita vida pela frente. Mas, aqui, parece que avançar décadas significa também se aproximar cada vez mais da nossa data de validade. Dizer que uma mulher está “acabada”, afinal, é muito significativo: é como dizer que seu tempo útil acabou.
Aos 34, já enxergo com um bom distanciamento a menina de 24 que fui um dia. Quando contraponho sua imagem à minha, percebo em meu rosto atual diversos indícios de futuras quedas. Já há linhas de expressão, uma falta de elasticidade, muitos e muitos fios de cabelo branco — coisas que não existiam na minha imagem de anos atrás. Mas, conforme faço esse exercício de comparação, também vejo na menina de 24 uma forte necessidade de agradar, em especial homens, e uma completa disposição para fazer o que quer que eles pedissem de mim. E fiz. A minha eu de 24 era desesperada por atenção, sabia pouco ou quase nada sobre ficar sozinha, aceitava migalhas disfarçadas de banquetes, endeusava as criaturas mais viscosas do esgoto, entregava muito e recebia pouquíssimo. Era facilmente manipulável — e talvez isso explique por que fui tantas vezes o terreno perfeito para homens bem mais velhos se estabelecerem e se espalharem.
Há algumas pesquisas que mostram que a idade em que mulheres mais sofrem assédio é a pré-adolescência. Não vou entrar no quesito cultura da pedofilia, mas é impossível não perceber que há uma associação direta entre ser considerada desejável e ser o mais jovem possível. Ou pior: entre ser considerada desejável e ser o mais manipulável possível. Meninas e mulheres jovens são tão almejadas porque oferecem o que o patriarcado mais quer: uma pessoa ainda em formação, sem tantas ferramentas para se defender, sem tanta capacidade de enxergar violências. Também não é difícil entender por que a figura da mulher velha é tão execrada. Não apenas ela carrega uma boa bagagem de conhecimento, sendo mais capaz de farejar predadores em peles inofensivas, como também, para os padrões de beleza vigentes, ela é uma mulher que deixou de ser considerada desejável — e todo mundo sabe que, por aqui, uma mulher só tem utilidade enquanto for comível.
Ser uma mulher velha é, portanto, ser uma mulher sem função no mundo. O que a gente faz de nós mesmas quando o mundo nos ensinou que: 1) a coisa mais importante que a gente precisava ser era desejável; 2) a partir de certa idade, ser desejável já não é uma opção? Parece uma questão restrita ao âmbito amoroso, mas na verdade não, se alastra pela dificuldade de manter a relevância no mercado de trabalho, pela convivência social, entre outras coisas. Em A Substância, filme da Coralie Fargeat que está sendo um grande queridinho do momento, me chamaram a atenção as cenas em que a Demi Moore ficava em casa, jogada em frente à televisão, comendo e comendo e falando sozinha e se sujando com restos de comida, enquanto sua versão mais jovem vivia. Sem poder ocupar o lugar de mulher desejável, o que sobra? O que tem para a gente fazer no mundo exceto se abandonar de vez?
Não à toa, as figuras de mulheres mais velhas que vemos nas histórias muitas vezes se dividem nesses dois tipos: as que aceitaram a velhice e, consequentemente, mergulharam em um total autodesleixo, vagando por aí e tomando conta da vida alheia (pois, é claro, não têm vida própria); e as que lutam contra o envelhecimento e seguem sustentando um cosplay de juventude, disfarçando rugas, mentindo datas de nascimento.

Apesar de ter tido algumas muitas críticas ao filme A Substância, gosto particularmente de como a dinâmica entre a versão jovem e a versão velha se desenvolve, com a jovem se espalhando cada vez mais e a velha ficando restrita a um espaço escuro no cantinho do banheiro. A vida é dos jovens. O outdoor é dos jovens. O retrato na parede é dos jovens. O sexo é dos jovens. As grandes experiências e convites profissionais são dos jovens. Às mulheres mais velhas, como diz a Ursula K. Le Guin, no trecho que encabeça essa edição, sobram as rachaduras, as migalhas, a necessidade de se alimentar dos restos do que se foi um dia.
Talvez por isso tenha me agradado particularmente o final do filme. A mulher que recusa a possibilidade de viver nas rachaduras e insiste em uma juventude impossível só pode acabar onde também acabam as personagens de A morte lhe cai bem: na criação de uma deformação incontornável. Monstruosas e movidas pelo mais puro desespero, elas persistem na tentativa de cosplay. Demi Moore coloca uma foto dela mesma pregada em sua cara de monstro, enfeita o aglomerado de carne com um brinquinho e segue para a rua, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Em A morte lhe cai bem, Meryl Streep tenta disfarçar que seu corpo está tão retorcido que agora os peitos ficam nas costas.
A monstruosidade, aqui, aparece para apontar quão longe estamos indo para tentar segurar nas mãos algo que vai sempre nos escapar: o tempo. Mas, mais do que isso, o corpo monstruoso dessas personagens evidencia também a que tipo de violência um corpo feminino está sujeito apenas por seguir o fluxo natural da vida. Monstro, é etimologicamente aquele que revela, aquele que adverte, sendo capaz de nos informar muito acerca da nossa cultura. Entre exigências sociais, ostracismos e exclusões, resta às mulheres mergulhar em uma busca cada vez mais absurda, destrutiva, abrindo carnes, arrancando peles, repuxando ossos, injetando substâncias verde neon de qualidade obviamente duvidosa sem qualquer tipo de senso crítico. Estamos, afinal, dispostas a pagar o preço, seja ele qual for. Estamos dispostas a levar nossos corpos às últimas consequências, ainda que no final do processo eles já mal se pareçam nossos. Ainda que nossos rostos já não se pareçam nossos. Ou tampouco se pareçam rostos, para começo de conversa.
Livros esquisitos para quem gostou de A Substância
Se você gostou de como A Substância usa a monstruosidade e o body horror como ferramentas para evidenciar certas violências sofridas pelas mulheres, muito provavelmente vai gostar desses livros também.
Sacrifícios humanos (María Fernanda Ampuero)
“Neste livro, o leitor ou a leitora passará a compreender a atmosfera que ronda a literatura de María Fernanda Ampuero, uma voz imprescindível da literatura latino-americana contemporânea. A podridão, a hostilidade e a violência marcam as nossas vidas, assim como a das diversas personagens de Sacrifícios humanos. Em nosso mundo, as bestas são os próprios humanos que se põem a aterrorizar uns aos outros, evidenciando as desigualdades, o desprezo que mantemos por nós mesmos e a violência que instauramos como um ato cotidiano.”
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Voladoras (Mónica Ojeda)
“Em Voladoras, encontramos criaturas que sobem nos telhados de suas casas e voam, terremotos apocalípticos, desejos inconfessáveis, segredos familiares e ancestralidade em profusão. Oito contos que se situam em cidades, vilas, charnecas ou vulcões onde a violência e o misticismo, o terreno e o celeste, pertencem ao mesmo plano ritual e poético. Aqui, Ojeda, uma das vozes literárias mais expressivas da sua geração, mobiliza a cosmogonia andina, também latino-americana, de modo surpreendente; e outra vez afirma: beleza e horror são dois lados de uma mesma moeda.”
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O corpo dela e outras farras (Carmen Maria Machado)
“Uma esposa se recusa a remover a fita verde de seu pescoço mesmo após súplicas de seu marido. Uma mulher relata seus encontros sexuais lentamente, como uma praga que consome a humanidade. Uma vendedora descobre algo terrível dentro das costuras dos vestidos de festa de uma loja. Uma cirurgia de redução de peso resulta em um hospedeiro indesejado. Ao mesmo tempo antiquado e sexy, estranho e mordaz, cômico e extremamente sério, O corpo dela e outras farras alterna uma violência brutal e o sentimento mais rebuscado. Em sua originalidade explosiva, essas histórias extrapolam as possibilidades da ficção contemporânea. Carmen Maria Machado derruba as fronteiras arbitrárias entre realismo, ficção científica, comédia, horror, fantasia e fábula. Nesta coletânea de contos provocativa, considerada um Black Mirror feminista, gêneros literários são desafiados em narrativas que mapeiam a realidade das vidas das mulheres e a violência a que são submetidos seus corpos.”
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Lembrete! ⚠️
No dia 31 de outubro, para celebrar o dia das bruxas, sai o primeiro conto da nova seção dessa newsletter! [Se você não leu a última edição, um resumo: agora temos por aqui a seção Entre dentes, com publicações mensais de pequenos contos de horror.]
O conto se chama “Os nomes dos mortos” e fala bastante sobre maternidades, lutos e identidades. Espero que seja uma boa leitura por aí!
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Sou uma 50+ e quando comecei a ler seu texto, pensei que aos 34 eu tbm achava que estava ficando velha. Agora não mais, pq renunciei as regras. É um caminho longo.