#39 – Tadinha
A primeira vez que eu me odiei foi aos 12 anos. Com amigas que vestiam 36 e 38, meu tamanho 42 parecia assustadoramente grande, assustadoramente destoante. Os meninos da escola deixavam claro que me consideravam gorda demais e pareciam fazer questão de apontar a minha inadequação sempre que possível. Eu não constava na lista de meninas beijáveis e, se cometesse o crime de gostar de algum deles, era considerada, na melhor das hipóteses, uma coitada. Dos meus anos de adolescência, lembro especialmente do sentimento de pena. O rascunho desse texto nasceu, inclusive, meses atrás, a partir de uma cena que aconteceu no BBB 23. Enquanto vários homens comentavam sobre o corpo das mulheres da casa (todas muito magras, secas, padronizadas), alguém perguntou “e a Amanda?”, então um deles riu e respondeu: “tadinha, né, ela se esforça”.
Sinto que eu fui a tadinha esforçada na adolescência. Alguém que precisa compensar para ser notada. Dentro dos espaços juvenis onde eu circulava, não era considerada uma opção afetiva. Por outro lado, eu — que, aos 12, já tinha um corpo tamanho 42 — ouvia muitas cantadas de homens desconhecidos e bem mais velhos quando andava pelas ruas. Diversas vezes, voltei para casa com vontade de me enrolar em um casulo, de nunca mais precisar ser vista. Diversas vezes, voltei confusa, embaralhada nessa combinação estranha de ser rejeitada pelos meninos e desejada pelos homens. Eu queria os romances inocentes da idade. Bilhetinhos, mãos dadas, selinhos afetuosos. O que recebi foram homens que me falavam as coisas mais baixas e me olhavam como se eu fosse um animal prestes a ser caçado.
Depois dos 20, tendo engordado, passei de vez a ocupar esse lugar. Mais do que nunca, eu era um corpo invisível, mas fetichizado com frequência. Me tornei uma verdadeira expert na arte de compensar. Muita lingerie, decotes imensos, cabelos jogados, disposição para qualquer negócio, doses cavalares de submissão. Ainda que em um corpo destoante, era muito fácil ser o que os homens queriam que eu fosse. Era fácil mergulhar nessa grande performance, aceitar de tudo, oferecer de tudo, me ajoelhar muito mais vezes do que gostaria de ter me ajoelhado, interpretar uma personagem sempre pronta para ser desejada. Uma tadinha esforçada, agora disfarçada de mulher dona da própria vontade. Chorando no banheiro de alguns motéis por perceber que a linda conexão entre dois corpos que me preenchia por uma ou duas horas não atravessaria a porta do quarto: lá fora, eu seria tratada como uma desconhecida pelas mesmas pessoas que acessavam o meu corpo poucos minutos antes. E, de fato, fui. Muitas vezes. Na mulher de 24 anos, via ainda a menina de 12: queria bilhetinhos de amor e mãos dadas. Recebia: homens que mal me olhavam na cara quando a faísca do tesão minguava.
Não sei exatamente em que ponto é possível separar tudo o que aprendi a performar da minha própria sexualidade, genuína e válida. Cito com frequência a frase do Bandeira, que diz “deixa o teu corpo entender-se com outro corpo, porque os corpos se entendem, mas as almas não”, e muitas vezes penso que, sim, é isso, não há outra conexão possível, exceto pelo corpo. Apesar de todos os vínculos que já tive, o momento em que me sinto verdadeiramente conectada a outro ser humano é quando somos dois corpos em sincronia e ultrapassamos a linha da racionalidade, das inibições, das neuroses e inseguranças. Lembro de Macabéa dizendo “eu não acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozinha”. Na minha experiência, um ser só fala com o outro pelo corpo. Não sei acessar os outros de forma diferente. Não conheço outra forma de ser acessada.
Mas gostaria de conhecer. Gostaria de ter conhecido os bilhetinhos, as mãos dadas, o afeto público. Gostaria de ter visto algo que não fosse tesão ou indiferença no olhar alheio quando tinha 20 e poucos anos. Gostaria de não ter me acostumado a essa performance de mulher que só diz sim, a ponto de não saber diferenciar o que é ela e o que sou eu. Ou a ponto de achar difícil entender que alguém possa nutrir qualquer interesse por mim que vá além do que eu posso oferecer sexualmente.
Hoje sonhei que me envolvia com uma mulher, mas ela chegava ao nosso encontro dizendo que precisou pegar 3 ubers para despistar os olhares alheios e ninguém ficar sabendo que ela estava indo me encontrar. Eu fingia que não me importava, mas me sentia afundando na cadeira. Anos atrás, me relacionei com um cara que preferiu dizer às pessoas que eu era louca e tinha inventado tudo a assumir que tinha se relacionado comigo. Lembro de ficar sabendo disso por uma amiga. Cheguei em casa com vontade de vomitar, entrei imediatamente no banho e esfreguei toda a minha pele com uma esponja até machucar. Queria tirar qualquer resquício dele de mim. Mas não sei se pude, não sei se o resquício dessas pessoas é capaz de sair do meu corpo, ou da forma como eu aprendi a lidar com ele. Sim, é possível ressignificar. Buscar novas maneiras, novos olhares, novas relações. É o que tenho feito. Por outro lado, encaro com frequência esse buraco. Me pergunto se é viável preenchê-lo com tanto tempo de atraso. Ou se, agora, talvez me caiba apenas conviver em paz com a ausência das experiências que eu não pude ter.
Aprender a ser desejada foi tão fácil. Conheço o momento exato em que saio do meu corpo e dou lugar a essa espécie de persona. Brinco, digo que agora quem está no controle é o ascendente em escorpião e não mais o sol em aquário. É simples, sinto que aprendi todos os truques. E não são muitos, então os executo sempre com a sensação de que muito em breve vou perder a graça para aquela pessoa que agora me olha com fascínio. One trick pony.
Sim, aprender a ser desejada foi fácil. Ser amada é que permanece um grande mistério para mim.
[Uma possível trilha sonora para esse texto de hoje: Easy to love – The Jezabels
Ela cantando “just let me be easy to love” toca com frequência na minha cabeça.]
Li, assisti, encontrei
✷ Não chego a citar no texto de hoje, mas boa parte das experiências que me marcaram negativamente aconteceram com homens muito mais velhos que eu. A Clarissa Wolff falou sobre isso nessa edição da Alcateia.
✷ “O vazio é uma espécie de liberdade. Dá para dançar dentro dele.”
Parece que escolhi justo o dia 12 de junho para mandar o que acredito ser um dos textos mais pesados dessa newsletter, mas juro que não foi planejado. De qualquer forma, apaixonados ou não, fiquem com os poemas da Mar Becker, que, como esse aí de cima, falam sobre o amor de uma forma muito bonita.
“O que é o amor?
Por Emma K, 6 anos
O amor é quando você perdeu alguns dos seus dentes, mas você não tem medo de sorrir porque você sabe que seus amigos vão te amar mesmo que parte de você esteja faltando.”
Me li na tua escrita. Parece até que li tudo que não escreveu e que é ainda mais denso e que a gente esconde atrás do sarcasmo. Parei com as performances para atrair gentes. Me recolhi em mim e assim sigo. Não vislumbro algo além de eu comigo mesma daqui pra frente. Mas sim, a criança desejosa de amor e aceitação conrinua dentro com a mão estendida. Ao menos nos lemos no outro. Te agradeço.
Às vezes, acho que você está na minha mente. Ou você sou eu.
Que atravessamento, Maíra.