#56 – Obsessão feminina
Ou: como firmar cumplicidades e construir histórias que não nos reduzam aos mesmos estereótipos conservadores de sempre?
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Obsessão feminina
“Não tem nada mais feminino do que ser obcecada por outra mulher.” Quem escreveu essa frase foi a , em um texto ótimo sobre Barbie. Guardei comigo porque foi quando li isso que me caiu a ficha: sim, somos obcecadas umas pelas outras. Essa obsessão se disfarça de outras coisas: às vezes, uma competitividade que te faz criticar exageradamente uma mulher e adorar se sentir superior a ela; às vezes, o oposto: a constante comparação e a sensação de que ela, sim, faz as coisas como deveriam ser feitas — enquanto nós não passamos de um rascunho mal executado; ou também o fascínio pelas celebridades mulheres, suas perfeições, seus desleixos. Vez ou outra, pode ser até a obsessão nua e crua mesmo, a ponto de a gente se perguntar: eu quero ser essa mulher ou eu quero estar com essa mulher?
Mas acredito de verdade que a obsessão umas pelas outras é talvez um dos pontos centrais da experiência de mulheridade (dentro de um inevitável recorte, é claro). Somos obcecadas umas pelas outras porque, desde muito cedo, estamos sendo ensinadas sobre o que deve ser uma mulher. Como deve se vestir, se comportar, o que deve dizer, como deve viver a vida. Estamos, desde muito cedo, sendo testadas para ver se, afinal, aprendemos tudo. E estamos, desde muito cedo, falhando nestes testes. Daí a necessidade de olhar para o lado, para as outras, ver como se comportam, tentar entender seus acertos, imitar aqui ou ali, pescar uma eventual cumplicidade. A sensação é: só nós falhamos no teste, todas as outras estão indo muito bem. Só nós nos sentimos uma fraude. Então, nos comparamos e competimos e medimos inseguranças e criamos rivalidades e escondemos os pontos fracos e fingimos que sabemos o que estamos fazendo e tiramos as crueldades do armário. Não à toa o mundo parece desacreditar tanto na amizade feminina. Porque não fomos mesmo criadas para sermos amigas, mas sim para rivalizar nessa busca interminável pela validação dos homens.
É claro que nem sempre a nossa obsessão mútua vai ganhar contornos de hostilidade. O patriarcado adoraria que fosse assim, mas não, acredito que é possível seguir outro trajeto. Agora que temos falado tanto sobre o que é ser uma mulher num mundo que frequentemente enxota mulheres para o cantinho, observar umas às outras pode ser uma ótima estratégia de fortalecimento. Não preciso olhar para o corpo magro de alguma famosa tamanho 36. Posso escolher olhar para outras mulheres, com corpos mais parecidos com o meu. Podemos trocar experiências, apoiar umas às outras, decidir não competir.
A comparação é sempre um demônio soprando ideias erradas nos nossos ouvidos. Sim, a ex do seu atual parece lindíssima, o que te faz passar mais horas em frente ao espelho caçando problemas. Sim, aquela mulher com quem você trabalha parece saber muito bem o que está fazendo e te deixa com a sensação de ser uma ameba. Por aqui, é frequente a sensação. Acompanho mulheres do mundo literário que parecem estar sempre eloquentes e maravilhosas nos eventos, com seus livros bem estruturados sendo vendidos e lidos. Observo elas e penso: “olha só, isso é que é ser uma pessoa de verdade.” Elas claramente sabem o que estão fazendo. Enquanto eu me sinto três crianças empilhadas dentro de um sobretudo.
Não existe solução pronta para lidar com esse sentimento (embora a terapia ajude muito). Mas o que tenho tentado fazer é um exercício de substituição. Sempre que estou ligada nesta frequência de comparação destruidora, tiro o foco de mim e vou arranjar alguma forma de apoiar outra mulher. Compro o livro de uma conhecida, ajudo a divulgar o trabalho de outra, apoio o projeto de uma amiga. Como se eu estivesse ensinando meu cérebro, tal qual os tubarões do Procurando Nemo que repetiam peixes são amigos, não comida, eu reafirmo para mim mesma com frequência: outras mulheres não são minhas rivais. Pelo contrário. Estamos — com inevitáveis diferenças, considerando os muitos recortes — no mesmo barco, comprando brigas que muitas vezes se assemelham.
No fim das contas, acho que a obsessão feminina por outras mulheres é também uma forma de verificar se existem outros caminhos possíveis. Será que podemos ir por ali e não por onde mandaram? Sim, olha só, aquela moça ali foi. Observar outras mulheres é observar também os caminhos que foram abertos por mulheres que vieram antes de nós. E tatear as nossas próprias possibilidades dentro deste labirinto esquisito em que o patriarcado nos coloca. Ficamos obcecadas pelas liberdades umas das outras, pelas recusas que vemos umas nas outras. Como se, para inventar o nosso próprio trajeto, também fosse preciso investigar o trajeto que as outras inventaram para elas.
Girl, so confusing¹
Já dizia a querida Charli XCX, “it’s so confusing sometimes to be a girl” (“às vezes é tão confuso ser uma garota’’). Ainda que me dê um breve siricutico ver mulheres de 30 anos usando termos como “garota” para falar delas mesmas, andei gostando muito dessa música. Curiosamente, ela veio acompanhada de uma série de trends que tomaram a internet em 2024, todas relacionadas a garotas: girl math, girl dinner, I’m just a girl, clean girl aesthetic, messy girl, hot girl walk, entre outras. Não vou entrar muito nas possíveis problemáticas dessas trends, porque um texto muito bom já foi escrito sobre isso, e eu recomendo bastante a leitura.
Meu ponto é que, para além dos problemas envolvidos nessas trends (e da forma como o capitalismo facilmente assimila esses discursos e transforma tudo em feminismo de blusinha da Renner), me parece existir nesse movimento, também, uma tentativa de pautar novas formas de entender o que é esse ser mulher que a gente tanto fala. Uma experiência que não passe apenas pelas violências, mas também pelas vivências positivas que nos conectam, pelas possibilidades de evidenciar essas vivências, criar histórias sobre elas.
Nessa explosão de girls-alguma-coisa que tomou a internet, talvez exista um traço da necessidade de criar novas narrativas (com algum humor e alguma leveza) sobre as nossas experiências de mulheridade. A grande questão é que narrativas são essas — pois é preciso cuidado para não cair de volta nos braços dos antigos estereótipos conservadores dos quais temos tentado fugir com tanto esforço (e é isso o que tenho visto bastante nas trends atuais).
“Girl, how do you feel being a girl?” (“garota, como você se sente sendo uma garota?”), pergunta a Charli, no refrão da música. Eu me peguei pensando que não sei responder. Como mulher, na maior parte do tempo, me sinto cansada, desvalorizada, receosa, vulnerável, exposta, furiosa, coagida. Até mesmo as coisas agradáveis que parecem pertencer ao que costumamos chamar de vivência feminina me soam como distrações, ou pequenas imposições disfarçadas de escolha. Vivo na constante dúvida: eu realmente gosto disso, ou me ensinaram a gostar? Eu estou mesmo escolhendo isso, ou só naturalizei esse caminho como o único possível?
Como a garota que fui um dia, a resposta para a pergunta da Charli seria ainda mais complexa. Me sentia validada pelos motivos errados, frágil e faminta, aprendendo a lidar com uma recém-nascida crueldade, inebriada por sensações extravagantes, manipulável, mas também propensa a violências sutis, obcecada por outras garotas mais magras, mais bonitas, mais inteiras, autodestrutiva, tateando os meus próprios impulsos, tentando entender como caber no molde que me venderam sem precisar amputar nenhuma parte minha — e, eventualmente, sim, amputando várias partes minhas. Eu era uma garota mezzo selvagem, mezzo desesperada para me encaixar. Me sentia em um constante limbo, um lugar fronteiriço e fragmentado. Com o meu e-mail da Hello Kitty (sim, isso mesmo: mazita@hellokitty.com), cabelos loiros divididos ao meio, obsessivamente assistindo ao clipe de Bring me to life, do Evanescence, me perguntando como seria pular de um prédio.
Ao ouvir a música da Charli, fico me perguntando se não estamos em um momento de obsessão justamente com essa pergunta: “how do you feel being a girl?” O que é ser uma garota para você? Não que isso seja novidade, enquanto escrevo lembro da Madonna cantando “do you know what it feels like for a girl?”. A vivência de uma garota/mulher sempre foi tema de músicas, textos, filmes. Mas a pergunta reside sempre não respondida — ou, no máximo, parcialmente respondida, porque uma possível resposta à música da Madonna lançada em 2000 com certeza já não conversa com as demandas de garotas e mulheres em 2024. Sem contar que, inúmeras vezes, essa pergunta foi respondida com lugares-comuns que apenas nos levavam de volta aos mesmos papéis ocupados há séculos.
É confuso, como diz a Charli. Sem respostas fixas, prontas, fechadas. Talvez o caminho seja justamente não parar de fazer as perguntas, não parar de abrir espaço para que a gente siga elaborando possíveis respostas, possíveis histórias sobre as nossas vivências que vão além das violências de cada dia. Se a trend do I’m just a girl, por exemplo, começou como uma recusa à clássica fala “you’re not like other girls” (“você não é como as outras garotas”), falar sobre o que nos une para além das agressões, dos estereótipos, das obviedades talvez seja, sim, uma forma de firmar cumplicidades necessárias e construir um novo entendimento a respeito do nosso lugar no mundo. Um entendimento que não passe pelas perspectivas retrógradas das quais temos sido reféns há tanto tempo.
¹ Girl, so confusing é uma música da cantora Charli XCX. Para ouvir, clique aqui.
Li, assisti, encontrei
✷ Esse texto da talvez tenha sido o meu texto favorito do ano todo. Foi uma verdadeiro tapa na minha cara, inclusive.
“O que me incomoda em todos esses posts sobre viver 30 anos como se você tivesse 130 é que o que eles propõem não é apenas uma virada para o caseiro. É um encolhimento. Das sensações, das experiências, de tudo. Da própria vida.”
✷ A escrita como um exercício de cravar os pés no presente.
✷ Sobre convocar a vida no outro.
✷ Enfim, comprei a agenda de 2025 da Todavia. Sempre vejo as pessoas falando bem, e encontrei ela por um preço bem bom (R$ 73,90) na Amazon, então decidi dar uma chance. Vamos ver se consigo me adaptar.
A famigerada pesquisa de fim de ano
Se você acompanha muitas newsletters, não deve mais aguentar receber pesquisa para responder. Sei que está todo mundo nessa de repensar estratégias e planejar mudanças para 2025, e eu me incluo 100% aí.
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A musica da Madonna me dá muita paz, mesmo não trazendo respostas pra todas as minhas angustias. Espero que vc continue escrevendo por aqui ano que vem e que tbm traga questões da mulheridade, gosto de te ler. Beijocas.