#59 – O que pode um corpo?
Cansativo existir dentro de uma maquinaria de órgãos, mas não tem jeito.
[A Café com caos está em um breve recesso até o dia 19 de janeiro. Até lá, estou enviando alguns textos antigos, muitos deles publicados na minha antiga página do Medium. Esse de hoje foi escrito na época das Olimpíadas de 2020. Em janeiro, voltamos com os textos inéditos!]
Tenho pensado muito sobre o corpo. Não é de hoje, na verdade, faz tempo que o corpo é um negócio que me assusta. Essa estrutura intrincada, complexa, meticulosa, essa espécie de engrenagem onde tudo precisa estar delicadamente calibrado pra seguir funcionando. Algumas das minhas piores crises de ansiedade começaram com o pensamento: “quanta coisa pode dar errado dentro de um corpo?”. E esse pensamento abria a porta pra uma enxurrada de possibilidades terríveis. Infartos, AVCs, tumores, traumatismos, as doenças raras mais improváveis, os desastres que chegam de onde menos se espera. Daí pra acreditar que eu com certeza estava morrendo silenciosamente mesmo sem nenhuma evidência disso, era um pulo.
O corpo é um desconhecido às vezes. A gente não controla tudo o que acontece dentro dele — inclusive porque muitas vezes a gente nem chega a saber o que acontece dentro dele. São infinitos movimentos silenciosos, uma coreografia acontecendo por baixo da nossa pele sem que a gente tenha consciência. Sem que a gente seja informado sobre o rumo dessa coreografia. Está dando certo? Ou estamos prestes a descer ladeira abaixo?
A minha relação com o meu corpo, além das questões estéticas que atravessam um corpo gordo, passa também por essa sensação de alienação. Como eu posso me sentir conectada com alguém que não me mostra tudo que eu preciso saber? Como eu posso não me sentir um pouco traída por esse corpo que não me informa sobre os meus próprios colapsos — ou só informa quando é tarde demais?
Ter um corpo, na maior parte do tempo, me cansa. Me pego pensando que é chato ter que existir de forma corpórea, eu preferia ser um conceito abstrato. Eu preferia não ter que me relacionar com essa máquina estranha e trabalhosa que é o meu próprio corpo, essa máquina que parece tão absurdamente frágil que qualquer desequilíbrio pode causar uma hecatombe. Eu preferia, mas não posso.
Ironicamente, por outro lado, eu cresci sendo uma adolescente até bastante ativa. Fiz natação, balé, street dance, lambaeróbica, vôlei de praia, dança contemporânea. Aos poucos, a vida foi me afastando dessa rotina de um corpo em movimento. Uma série de fatores me fizeram cair numa espécie de paralisia. Escrevi um livro inteiro sobre a imobilidade. Sobre estar empacada, engessada, imobilizada em mim mesma. Incapaz de me mexer. Com a cabeça sempre a 200km por hora e o corpo enferrujado, rangendo como uma porta antiga, preso na própria impossibilidade.
Ver as Olimpíadas agora, justamente agora, nesse momento de isolamento em que a paralisia parece ter se tornado ainda mais sólida, foi um susto. Como assim o corpo ainda pode tudo isso? Pode saltar e correr e lutar e dar um duplo twist carpado e dirigir uma canoa em uma correnteza absurda e emendar sei lá quantos metros nadando em um trecho de pedalada feroz? De repente, eu lembro que o corpo também é firme, é forte, é potência. Se dentro dele existem inúmeras possibilidades de falha no sistema, talvez ali também existam inúmeras possibilidades de conserto (afinal, uma máquina potente também sabe encontrar caminhos alternativos, sabe contornar desequilíbrios, recalibrar o que precisa ser calibrado).
O que pode um corpo? — eu lembro da pergunta vinda diretamente das aulas da faculdade. Pode muito, pode o inimaginável, pode abrigar o mistério do planeta. E, por isso mesmo, por abrigar tanto mistério, é preciso aceitar que sobre o funcionamento dele eu não tenho o controle que eu gostaria de ter. Um corpo é um organismo vivo, pulsante, possível. O que é bastante angustiante, mas também é bem bonito.
Leia também
#35 – Um trem em movimento
03 de maio de 2018. O Instagram me mostra a memória de um story em que estou falando, risonha, enquanto faço uma tatuagem. No rosto, um focinho e duas orelhas de raposa. Era o meu filtro favorito antigamente. Hoje sinto falta desses filtros bobos de cachorros e gatos e raposas…
#50 – Estratégias de conforto existencial
Tem uma cena de Bojack Horseman em que o Bojack diz: “Eu não entendo como as pessoas vivem.” Eu também não. Ou melhor: eu não entendo como as pessoas vivem sem achar a vida um imenso desconforto. Existir, para mim, é extremamente desconfortável. Acredito que boa parte desse desconforto seja decorrente do tipo de mundo em que a gente …
Se você gosta da Café com caos, você pode:
🫀 se tornar um apoiador.
🪴 acompanhar o meu perfil no Instagram, assim como o meu perfil de artes.
💌 recomendar a newsletter pra alguém ou compartilhar uma das edições nas suas redes.
🎬 pra quem é dos vídeos, também estou no TikTok e no YouTube.
Lembrei do Galeano:
A Igreja diz: o corpo é uma culpa.
A Ciência diz: o corpo é uma máquina.
A publicidade diz: o corpo é um negócio.
E o corpo diz: eu sou uma festa.
Que 2025 lhe seja generoso.
nossa, falou tudo. Meu sonho é transcender dessa forma corpórea e virar uma ideia