#63 – Por uma comunidade para chamar de minha
Na contramão das demandas capitalistas, estabelecer comunidades como uma forma de rebeldia.
Pertencimentos religiosos
Tempos atrás, vi alguém comentando que o senso de comunidade proporcionado pelas igrejas hoje em dia não era encontrado em nenhum outro lugar — daí, a adesão cada vez maior às religiões (especialmente a evangélica). De fato, as pessoas mais religiosas que conheço quase sempre nutrem uma espécie de coletividade. Vão à igreja assiduamente, e lá fazem amigos que passam a encontrar também em outras esferas da vida. Começam a frequentar a casa uns dos outros, casam uns com os outros, saem juntos, viajam juntos, praticam a religião juntos. De certa forma, é como se orbitassem os mesmos assuntos, as mesmas preocupações, a mesma visão de mundo. E pronto: criou-se um senso de comunidade.
A pessoa que postou isso (que infelizmente eu perdi de vista pelas esquinas da internet) dizia que hoje em dia é difícil encontrar esse sentimento em outros lugares. Ao menos, na vida adulta. Enquanto estamos na escola/faculdade, é normal nos sentimos parte de algo. Nossos amigos pertencem ao mesmo grupo, estão inseridos nas mesmas conversas, compartilham o mesmo cotidiano. Aí chega a vida adulta, e vamos um para cada lado. O trabalho às vezes proporciona algum senso de pertencimento, mas nem sempre. E, de resto, é o que já sabemos: estamos cada vez mais individualistas, cada vez mais solitários, gastando boa parte do tempo em engarrafamentos para ir e voltar de um emprego exaustivo, com pouco ou nenhum tempo livre. Onde encontrar comunidade?
Anos atrás, lembro que uma amiga começou a fazer aula de perna de pau e, em poucos meses, estava completamente imersa em um novo grupo. Eles se viam nas aulas, mas também saíam aos finais de semana, mantinham grupos de conversa, viajavam juntos, enfim, tornaram-se uma parte considerável da vida uns dos outros. Acho que ali eu reparei pela primeira vez como esse sentimento me faltava. Não lembro de ter sentido isso na vida adulta desde que trabalhei em uma livraria, dez anos atrás. De lá para cá, os poucos cursos que fiz não renderam grandes vínculos, eu acabei me adaptando ao home office e as amizades que tenho agora são de lugares radicalmente diferentes, mal formam um trio. Uma realidade que, acredito eu, é semelhante à de muitas pessoas por aí. Daí, volto à pergunta: onde encontrar comunidade?
Redes (não tão) sociais
Ironicamente, o mais perto que cheguei de um senso de comunidade nos últimos anos foi graças ao Instagram (pois é, esse demônio do qual todos os dias alguém no Notes conta que está livre há 13 dias feito uma droga pesadíssima). Apesar dos pesares, o Instagram foi, em grande medida, positivo para mim, pois me permitiu encontrar — em meio à confusão e à gritaria da internet — pessoas que se conectavam com o que eu dizia, se interessavam pelos mesmos temas que eu, em suma, pessoas que falavam a minha língua. Por muitos anos, vim usando meu Instagram como alguém que constrói um espaço com muito cuidado. Lá era o meu cantinho para postar sobre o que me tocava, recomendar coisas que me encantavam, me indignar com o que quer que estivesse me indignando no momento. E, a partir daí, estabelecer trocas com outras pessoas que me mandavam mensagens, diziam sentir o mesmo (ou então diziam sentir o oposto, mas da mesma forma acabavam rendendo ótimas conversas).
Nos últimos anos, o meu perfil por lá foi para mim o que eram os blogs dos anos 2000. E, por mais que agora o Substack esteja, pouco a pouco, tomando esse lugar, foi com algum receio que acompanhei essa crescente vontade de abandonar o Instagram que parece ter se espalhado entre todo mundo (com razão). É inegável que a rede já não é o que era há tempos. E agora, com tudo o que tem acontecido (Trump, Musk, etc. etc.), fica cada vez mais difícil pensar em um uso saudável. Como dizem os gurus do marketing — e pelo menos nisso eles estão certos —, construir no Instagram é como construir uma casa em um terreno alugado. Mas para piorar, ainda por cima, esse parece ser um terreno em um lugar insalubre, utilizado para fins cada vez mais escabrosos.
Dito isso, eu entendo a motivação por trás da debandada do Instagram. Assim como de outras redes (no X, por exemplo, já não estou faz tempo). Minha questão é: para onde vamos, então? Não sei se a solução é buscar novas redes, fazer novos perfis, seguir novas pessoas... Por mais que eu seja uma forte defensora do impacto positivo que a internet pode ter no desenvolvimento das relações, acho que manter dinâmicas saudáveis por aqui tem ficado cada vez mais difícil. Se você passou tempo suficiente no ex-Twitter, talvez entenda o que eu quero dizer. Hoje em dia, se digito qualquer coisa em qualquer rede social, penso 438 vezes em como me justificar e deixar tudo explicadinho para ter certeza de que ninguém vai me interpretar mal — e ainda assim, mesmo que eu poste um simples “amo banana”, tenho certeza absoluta de que, como acontecia no Twitter, caso o post cresça o suficiente, vai aparecer alguém para dizer “mas por que você odeia maçãs?”.
Sei que o negócio é bem mais complexo que isso e mexe com fenômenos que vão além do que estou dizendo, mas o ponto é que: isso aqui não é a blogosfera dos anos 2000. Por mais que alguns de nós queiramos muito acreditar que sim. Nem o Instagram, nem o Substack, nem o Bluesky, nada disso pode ser a blogosfera dos anos 2000. Não tem como, as dinâmicas não são as mesmas, nossa relação com as redes não é a mesma (para começo de conversa, nos anos 2000, era possível entrar e sair da internet, o que já muda radicalmente a história).
Ainda assim, para muitos de nós, a migalha de comunidade que as redes oferecem, mesmo cobrando um preço caríssimo por isso, é o máximo de conexão que conseguimos em um dia a dia cada vez mais árido.
Pequenos (grandes) respiros
Para quem trabalha com arte (e aqui não digo “trabalho” no sentido capitalista da coisa, é claro, mas como quem mexe com algo), a falta de um senso de comunidade também afeta o potencial criativo. Cansei de tagarelar por aí sobre como escrever é solitário. Como faz falta compartilhar perrengues da vida de artista, as dúvidas, as inseguranças, as ideias. Também falo com frequência sobre como sinto que, tanto no mundo literário quanto no da arte, rola um gate keeping, ou seja, pessoas que regulam as informações que compartilham com outros colegas da mesma área. Para quem está começando, descobrir o próprio caminho é sofrido. Há poucas pessoas dispostas a dar dicas, sugerir estratégias, fazer alertas. O resto a gente vai descobrindo na prática, com a cara e com a coragem, levando 327 tombos diferentes, se esfolando um tanto, resistindo outro tanto.
E, num mundo que frequentemente engole artistas, que nos insere — tão cedo quanto possível — neste grande moedor de carne capitalista que mata boa parte da nossa vontade de criar, fico pensando que firmar alianças entre nós, criar espaços de troca em que um fortalece o outro, talvez seja, sim, um movimento de rebeldia. Uma pequena revolução. Por aqui, tenho conseguido isso no Clube Seiva¹, mas sei que também precisa partir de mim a disposição para estar nesses espaços. Resistir ao isolamento dos dias, defender o tempo que a arte me pede, preservar as trocas. Gestos discretos que, creio eu, vão movendo delicadamente as estruturas e colaborando para a construção dessa espécie de rede. Comunidades requerem uma boa dose de escuta, afinal, de disposição para estar presente para o outro. Ser lido, mas também ler o outro. Ser apoiado, mas também apoiar. Se o capitalismo nos empurra para uma vida de crescente isolamento, priorizar a criação de redes saudáveis (as reais — que vão muito além das mídias) talvez seja, enfim, uma forma de combate.
Eu gosto de pensar que aí existe um caminho a se tentar.

¹Coragem (e companhia) para criar
Falei sobre a Seiva no texto de hoje e trago boas notícias: tenho um cupom de desconto de 10% para quem quiser entrar no clube! Basta acessar esse link e, na hora do pagamento, colocar o cupom MAIRACOMACENTO.
No clube Seiva, você tem: oficinas diferentes todo sábado de manhã, com profissionais de áreas diversas (já tivemos pintores, roteiristas, ilustradores); acesso a um grupo do WhatsApp para trocar ideias com outros criativos (estou lá e posso afirmar que é um grupo com uma energia muito gostosa); inspirações diárias; uma cartinha quinzenal; e playlists pensadas com muita delicadeza para te inspirar com músicas de diferentes estilos.
Entrei no clube assim que ele começou, no iniciozinho de fevereiro, e já desconfio que foi uma das melhores decisões que tomei esse ano. Estou criando bem mais, os exercícios das oficinas são incríveis, e no grupo do WhatsApp sempre tem muita troca de experiências, opiniões e dicas. Parece que o senso de comunidade está vindo aí.
Li, assisti, encontrei
✷ Um site que mostra a história dos filmes em frames. Se você — assim como eu — gosta de umas imagens bonitas, pode ser uma experiência interessante escolher o próximo filme que quer ver se baseando apenas nelas.
✷ Li o último livro da Thaís Campolina, Estado febril, e fiz alguns comentários lá na outra rede.
✷ Por que tantas mulheres não têm hobbies?
Leia também
#61 – Uma recusa à solidão
Faz tempo que ando revendo meu conceito de amizade. Provavelmente desde que a não monogamia entrou na minha vida e eu comecei a repensar a importância que a gente dá às relações fora do âmbito amoroso-sexual (qualquer hora quero cutucar mais fundo esse vespeiro, mas fica pra depois). Tenho algumas amizades bonitas com pessoas…
#56 – Obsessão feminina
[Você está lendo uma das edições gratuitas da Café com caos. Tornando-se um apoiador, você passa a receber também: uma edição mensal a mais, com compilado de recomendações do mês, e acesso a diversos brindes digitais exclusivos, como postais, pôsteres, colagens, etc. Sem falar na alegria de saber que está apoiando uma escritora/artista independente num …
Se você gosta da Café com caos, você pode:
🫀 se tornar um apoiador.
🪴 acompanhar o meu perfil no Instagram, assim como o meu perfil de artes.
💌 recomendar a newsletter pra alguém ou compartilhar uma das edições nas suas redes.
🎬 pra quem é dos vídeos, também estou no TikTok e no YouTube.
Comunidade não é fácil de fazer hoje porque precisamos de espaço e tempo... Duas coisas comidas vorazmente pelo capital. Feliz que vc tem encontrado seu lugarzinho e é gostoso acompanhar suas criações ♥️
Eu tenho sentido tanta falta de uma comunidade que as vezes penso em entrar pra alguma igreja, mesmo sendo agnóstica!
O clube seiva parece maravilhoso, mas fico com uma sensação estranha de que: cheguei ao cumulo de ter que pagar por amigos?