#37 – Dez resmungos sobre fascínios
1. Uma vez, me encantei por um homem por causa do nariz. Depois, veio todo o resto. Gosto muito de narizes grandes, retos, narizes que me lembram bicos imponentes de pássaros. No geral, sou atraída por pessoas que me remetem a pássaros (ou a outros animais). Também reparo muito nas arcadas dentárias. Dentes tortos, pequenos, arcadas muito estreitas ou muito largas, que dão certa dicção específica a quem tem, certa forma particular de enunciar as palavras, essas me interessam bem mais do que os dentes de pastilha Mentex que parecem ser a nova moda.
2. Gosto de gente com uma sutil nota de deslocamento no olhar, gestos vagamente esquisitos. Pessoas que parecem estar sempre um pouco fora do eixo, como se habitassem um entrelugar — aquelas que não estão nem aqui, nem lá. Qualquer coisa de inapreensível. Gosto de pessoas que me escapam. Ou que me intrigam. Pessoas que não consigo definir, entender, captar. Pessoas que me engolem como um livro que leio obsessivamente em busca de uma resposta inexistente.
3. Anos atrás, uma colega de trabalho comentou que tinha muita preguiça de quem estava sempre tentando seduzir. É desnecessário tentar parecer sedutor, ela dizia, o que você pensa que vai seduzir os outros raramente é o que de fato seduz.
4. Eu sempre achei muito intrigante o conceito de atração. Por que me atraio por X e não por Y? Por que, coletivamente, rechaçamos certas características, certos corpos? E como lidar com esses gostos construídos por um mundo que enaltece padronizações e invisibiliza quem não cabe nelas? Como desaprender a gostar do que aprendemos a gostar e dar espaço para novas formas de olhar o outro? Do que gostaríamos se não tivéssemos aprendido a gostar do que gostamos?
5. Tenho uma grande tendência a me interessar por pessoas muito formais, fechadas ou tímidas. Gosto de como elas parecem territórios ocultos. Gosto do enigma. Gosto de imaginar de que forma o rosto delas se transforma quando são acessadas, quando são abertas. Mas, principalmente, gosto de tentar desvendar a maneira ideal de abri-las. Me apaixonei por uma mulher assim anos atrás, em uma carta para ela escrevi: “é que eu quero ver como fica o seu rosto quando sacudido por dentro”.
6. (Nunca cheguei a ver como ficava o rosto dela sacudido por dentro.)
7. Talvez a atração tenha a ver com essa vontade de ver o que ainda não vimos. Como na literatura. As histórias que entregam tudo de bandeja não nos seguram porque não há mais nada a desvendar. É a promessa de alguma coisa ainda não percebida que — nos livros e nas pessoas — nos mantém fisgados e envolvidos. Penso que as seduções, literárias ou não, acontecem nessa linha tênue entre mostrar e esconder. Entre capturar alguma coisa e, no próprio gesto de captura, entender que ainda há muito a ser visto.
8. Há algum tempo, movida por uma crise de autoimagem, cometi a inocência de perguntar a quem sentia atração por mim por que sentia atração por mim. Ouvi respostas genéricas. “Você é inteligente”, ou “você é talentosa”. Nada disso me pareceu um bom motivo. Conheço muitas pessoas inteligentes e talentosas. Não me sinto atraída por boa parte delas. Depois entendi que o que eu queria era que alguém me explicasse o inexplicável. O inapreensível. Queria que alguém me desse motivos concretos quando não há nada de concreto aí. Pelo contrário.
9. Quando era mais nova, estava comprando roupa numa feira e a moça disse que eu era muito bonita, porque eu tinha uma característica que ela achava um charme: olheiras. Ela não falou ironicamente, pude ver que era sincero. Mas acho que dei uma resposta antipática e cortei a conversa. Cheguei em casa e joguei no Google: procedimentos estéticos para remover olheiras.
10. (Nunca removi as olheiras.)
O texto de hoje não foi exatamente uma continuação, mas quase. Se você gostou da edição dessa semana e não leu a da semana passada, recomendo:
Li, assisti, encontrei
✷ Ainda é amizade quando a relação virou uma grande ausência? Sempre me questionei muito a respeito disso, e a Babi escreveu lindamente sobre o assunto.
✷ Essa edição maravilhosa da
“Foram muitas as vezes, no entanto, em que me senti intimidada e diminuída com o fato de que eu estava interessada em construir narrativas que partiam de alguma coisa da minha experiência. Eu me perguntava se fazia algum sentido o que eu escrevia, porque parecia ser pequeno e mesquinho querer falar em alguns momentos de mim mesma. Eu me perguntava até que ponto aquilo que eu escrevia tinha algum valor - artístico, informativo, algo pros outros que pudesse ir além do que me era conveniente.”
(Carla Soares)
✷ Sobre o exercício de amar e ser amado sem entender todos os porquês. (Tudo a ver com a edição de hoje.)
“Não subestimemos o amor que recebemos tentando colocar nele nossas próprias explicações: nem mesmo de nossos próprios desejos temos total transparência, quanto mais sobre os dos outros
Não é porque não sabemos esmiuçadamente todas as razões do amor que deixamos de vivê-lo, senti-lo, desejá-lo: há sempre algo que nos excede, que é um sim e pronto.”
(Geni Núñez)
✷ Sigo com muita dificuldade de ler, mas nesse fim de semana comprei o Cinzas na boca, da Brenda Navarro, e vai ser a minha próxima tentativa. O livro conta a história de uma jovem mexicana que parte para a Espanha com o irmão para procurar a mãe, porém, além de enfrentar as dificuldades da imigração, ela ainda precisa lidar com o suicídio do irmão e a necessidade de carregar as cinzas dele de volta para o México. Além da sinopse interessante, fiquei bem encantada com o projeto gráfico da Dublinense.
esse é o verdadeiro misterio, me encanto por pessoas quando elas sao ora ora, elas mesmas ! agindo naturalmente e sendo sinceras... pra mim é onde reside a atração
Ainda melhor que o anterior! Arrasou!