#38 – Pânico, suor e insistência
Ano passado, depois de um bom tempo sem terapia, encontrei uma psicóloga que me pareceu convidativa. Cheguei a marcar a primeira sessão com ela, depois cancelei, movida por uma mistura de cansaço, medo e falta de dinheiro. Ainda assim, passei um bom tempo pensando nessa primeira sessão. Como eu condensaria 30 anos de existência para que ela entendesse bem quem eu era? De que forma selecionaria os pontos marcantes da minha história, que contribuíram para que eu chegasse até ali? No Twitter, vi alguém comentando que preparou uma apresentação no Powerpoint para a nova terapeuta, achei uma ótima ideia. Nada como recursos visuais. Veja bem esse ponto aqui, circulado de amarelo, foi aqui que começou a dar merda. Mas, por trás dessas estratégias, o que existia era a minha enorme preguiça de atualizar alguém a respeito de todas as minhas tragédias pessoais. Preguiça de chorar outra vez os mesmos choros, narrar outra vez os mesmos diálogos, pronunciar outra vez as mesmas palavras.
Enquanto planejava o que dizer à possível-nova-psicóloga, acabei percebendo que selecionar o que narrar sobre a minha própria trajetória era tão importante quanto os acontecimentos em si. Ou até mais. Mesmo porque o choro de 1998, que narrei de determinada forma em 2010, talvez agora possa ser entendido por outro ângulo pela minha versão de 2023. Podemos elaborar o que nos acontece sob novas óticas. A maneira como escolho narrar se torna, portanto, mais importante do que aquilo que narro. Mesmo assim, o desconforto de fazer isso diante de uma pessoa (ainda) desconhecida permanece.
Quando entro no Tinder, sinto algo semelhante. Imagina ir para um date com alguém que nem desconfia dos lugares tenebrosos por onde eu andei nos últimos anos. Imagina precisar explicar que só agora estou voltando à vida, que muitas vezes não tive tempo de fazer as coisas “normais” que pessoas “normais” fazem, pois estava muito ocupada tentando sobreviver à minha própria cabeça. Ou precisar dizer que só fico confortável em lugares específicos, em circunstâncias específicas. Boa parte do tempo, me sinto uma selvagem que passou décadas entre os bichos e precisa se adaptar novamente aos seres humanos. Sou incerta demais, ou bruta demais, ou escorregadia demais. Fujo das situações que as pessoas costumam adorar, tenho pânicos incompreensíveis, me assusto com barulhos altos e pessoas extrovertidas em excesso. Quando estava a caminho do show da Florence, na semana passada, pensei: se algum conhecido me encontrar por lá, espero que me trate como trataria uma gazela assustada. Pois é assim que me sinto em muitas situações. Um animal em estado de alerta. Um animal não habituado aos costumes humanos.
Também sou um animal viciado em conforto. Gosto muito daquilo que já conheço bem. Lugares familiares, marcas antigas, filmes que já vi 48 vezes, pessoas que estão na minha vida há décadas e a quem não preciso me esforçar para explicar nada. É confortável não ter que escolher palavras. Responder uma mensagem no automático, sem medo de ser mal compreendida. Ou até não dizer nada, porque a pessoa já entende até mesmo o seu silêncio, já conhece os seus desconfortos invisíveis a olho nu. Relações antigas carregam o seu próprio idioma, seu rol de referências, piadas internas, compreensões particulares. Em comparação, começar novas relações me parece muito com estar em um país estrangeiro, cujo idioma não domino, fazendo um grande esforço para compreender e ser compreendida. Uma constante sensação de pisar em ovos.
Anos atrás, na época da faculdade, lembro que fiz duas disciplinas com um casal muito simpático. A gente interagia aqui e ali, antes ou depois das aulas. Passamos dois semestres assim, nessas pequenas interações, até que — ao fim do segundo período — enfim engatamos uma amizade. Na minha cabeça, tinha sido um processo natural. Mas um dia, no meio de uma conversa, falei algo sobre termos passado quase um ano sendo conhecidos antes de nos tornarmos amigos, e eles riram: “claro, né, você não colaborava”. Como assim eu não colaborava? “Sim, a gente passou meses tentando se aproximar de você.” Foi a primeira vez que me chamaram de “escorregadia” — e não foi a última. Em outras situações, fui também considerada alguém de “difícil acesso” e achava complicado explicar aos outros que não era por arrogância, nem nada parecido, mas porque os começos, assim como na frase dita pelo Chandler, eram, para mim, sinônimo de desconforto e ansiedade.
Em uma edição recente dessa newsletter, citei a frase do António Ramos Rosa: “Um encontro é sempre um início de universo.” Lá, eu disse: “Apaixonamentos são feitos de muitas novidades. Passo a conhecer as músicas que ela escuta, talvez aprenda a cozinhar as batatas como ela cozinha, incluo seus hábitos no meu cotidiano, conheço novas ruas, novos livros, novas práticas, novas formas de enxergar o mundo. E, da mesma forma, empresto a ela os filmes que amo, minhas referências, manias, meu vocabulário. Um apaixonamento são dois rios que se misturam. É preciso troca. É preciso estar disposto a ouvir o idioma do outro. É preciso estar disposto a ensinar um pouco do seu.” Mas acho que preciso me corrigir. Não são só apaixonamentos. A construção de um novo universo — e, com ele, uma nova linguagem — se dá em qualquer tipo de relação que ultrapasse a barreira do superficial, seja ela amorosa ou não. Só que, para isso, preciso estar disposta a me sentir em um país estrangeiro por um tempo. Até que, aos poucos, as placas não me pareçam tão estranhas, os lugares comecem a me trazer familiaridade, a comunicação se torne mais fácil, fluida, orgânica… Não é da noite para o dia. Pode ser desconfortável. Mas acontece. Para quem fica — para quem insiste em ficar.
Li, assisti, encontrei
✷ Já comentei aqui que eu sou uma grande fã de reality shows questionáveis. Amo acompanhar dramas teoricamente reais em circunstâncias parcialmente montadas. O do momento é o The Ultimatum: Queer love, em que algumas mulheres passam por um casamento-teste umas com as outras, para descobrir se querem mesmo casar com as suas parceiras originais ou se existe a possibilidade de alguma conexão mais forte por aí. (Acho particularmente engraçada a lógica monogâmica que permeia todo o reality, já que, no fim, você só pode escolher uma pessoa — e todas parecem colocar bastante ênfase na ideia de que casar com alguém é ficar com essa pessoa até o dia da sua morte. Nem parece que o divórcio já foi inventado.)
✷ Certo ou errado? Ambos. Maravilhoso esse texto da Luciana. Sempre sinto que a contemporaneidade virou um grande Fla x Flu, em que a gente precisa estar posicionado do lado correto, ou então não presta. E é óbvio que existem situações e situações, mas sinto que há pouco espaço para a complexidade e a contradição. Para entender os dois lados de uma mesma história, ou perceber que, numa disputa entre X e Y, talvez X e Y estejam certos — e também errados.
é possível - olha a loucura - duas pessoas com opiniões opostas estarem certas ou erradas, ao mesmo tempo. ambas. todos esses arranjos têm feito parte da vida e tenho remado contra a maré (aquariana) enxergando o mundo não apenas como um derivado da minha visão de mundo e das minhas experiências. explorar outras lentes além das nossas próprias é cada vez mais difícil, dado o excesso de personalização e padronização no consumo e nos algoritmos. é mais simples e viciante tratar o mundo pelo próprio ponto de vista em vez de se esforçar pela complexidade.
Eu aqui lendo e super amando a edição e no finalzinho tem um comentário seu sobre a flowsmag, que surpresa e que honra! ♥️ Sabe que eu nunca tinha visto a ideia de ppt pra terapeuta? Bem interessante - e não tenho ideia de como faria o meu
Sinto que amizades novas sejam como aprender uma nova coreografia, demora pra pegar o passo, mas quando pega é uma delícia. Adorei o texto. Beijo