#51 – Um cemitério de ideias desperdiçadas
Quando eu tinha 25 anos, decidi que começaria um blog para escrever sobre temas recorrentes nessa fase da vida. O nome era Vinte e tantos anos. Passei tempos planejando o blog, vendo e revendo os temas, escolhendo o template, decidindo como seria feita a divulgação. Pensava obsessivamente, mudava a rota com frequência, idealizava os planos na minha cabeça e adiava o momento de tirá-los do papel. Até que, de repente, percebi que eu tinha feito 30 anos. O blog nunca aconteceu. O conceito de Vinte e tantos anos já não fazia mais sentido.
Não foi a primeira vez que deixei uma ideia apodrecer. Há planos que rumino mentalmente por anos, até perceber que já se perderam de tal forma que não faz mais sentido tentar executá-los. Planejo projetos, pinturas, livros. Faço longas anotações, penso e repenso, procrastino o momento de execução. Até, enfim, perceber que o momento passou: perdi o timing, a ideia se deteriorou como uma fruta esquecida no canto da fruteira.
Anos atrás, quando comentei sobre isso com a minha terapeuta, usei uma frase que lembro até hoje: eu não quero ser um cemitério de ideias desperdiçadas. Não quero, mas constantemente sou. Faz parte do meu trabalho diário catar os corpos das ideias que fui deixando pelo caminho, tentar entender o que fazer deles, limpar o solo para que ainda permaneça fértil e permita que novas ideias nasçam. Faz parte viver essa espécie de luto por um potencial abstrato que não teve a chance de se materializar. Seria administrável se não fosse tão frequente — mas é. Venho carregando um grande cemitério, e isso é tão asfixiante que fica difícil encontrar espaço para as ideias que ainda querem nascer. Mesmo porque, quando nascem, eu já olho para elas como um médico encararia um bebê recém-nascido fadado a não sobreviver por mais do que algumas horas. Minhas ideias são, quase sempre, sentenciadas à morte precoce.
Por trás da dificuldade tremenda de colocar planos em prática, existem muitos fatores. Perfeccionismos obsessivos, o hábito terrível de desgastar as coisas de tanto pensar nelas, procrastinação, a necessidade de administrar os muitos braços da pulsão criativa, a famigerada vontade de controlar tudo, o medo de dar errado — ou ainda pior: o medo de dar certo. Mas, sejam quais forem as causas, o resultado é o mesmo: uma frustração do tamanho de um piano sobre o nosso peito. Porque de todos os sentimentos que experimentei nestes 34 anos de vida (e foram muitos!), um dos piores certamente é a sensação de perceber que você está se desperdiçando. Quando digo desperdiçando, é em todos os sentidos. Desperdiçando ideias que poderiam se materializar no mundo de forma bem bonita; desperdiçando eventuais talentos que poderiam ter sido desenvolvidos, lapidados, aproveitados; desperdiçando desejos, que apodrecem inutilizados e dão lugar a todo tipo de rancor; desperdiçando tempo, essa coisa fluida e preciosa que não permite retorno.
Tempos atrás, escrevi um post bobinho no quase falecido Facebook que falava algo como: “se você e a pessoa querem se beijar, vai lá e beija. Não deixa as inseguranças e preocupações vencerem a briga, porque os beijos vividos, mesmo quando terminam mal, a gente consegue digerir; são os beijos não vividos que nos assombram.” A imagem dos beijos fantasmagóricos rondando os rostos dos envolvidos que não conseguiram sustentar o próprio desejo, como se retornassem para reclamar que não tiveram a chance de viver, me vem à mente agora enquanto escrevo. Talvez minhas ideias não aproveitadas também me assombrem, me cobrando porque não consegui dar vida a elas, porque permiti que morressem escondidas num cantinho mofado do meu cérebro.
Em Grande Magia, a Liz Gilbert comenta que pensa nas ideias como pequenas criaturas que aparecem para as pessoas que têm a possibilidade de executá-las. Você pode pegar a ideia, ou — caso não esteja em condições — pode deixar que ela flutue até outro criativo disponível para o trabalho. Se for pensar como ela, talvez seja possível dizer que eu sequestrei muitas ideias e as mantive em cárcere privado. Não executei, não permiti que outros executassem. Só deixei elas lá paradas enquanto eu diariamente olhava para elas e repetia para mim mesma que agora sim, agora vai, só falta uma coisinha, só falta pensar mais um pouco, mexer mais um pouco, só falta isso e aí sim, prometo que coloco em prática. (Não coloquei.)
Sei que alguém lendo isso vai dizer: mas você só tem 34 anos. E sim, é verdade, sei que é pouco, sei que ainda tenho tempo. Muitas ideias ainda vão sobrevoar a minha cabeça, e eu vou me esticar e agarrar várias delas. O problema é que, considerando o meu histórico, não sei se elas também não vão terminar apodrecidas no sótão da minha cabeça. Vez ou outra me imagino com 80 anos na cara, uma bagagem tremenda de planos não executados, escrevendo o mesmo livro há 40 anos, sonhando com pinturas que nunca encontrarão as telas, aquele gosto azedo de vida não vivida grudado no céu da boca.
É uma imagem pavorosa, talvez a mais abominável que eu posso conjurar para o meu futuro. E por isso mesmo é tão eficaz em me obrigar a mudar de rota. Não quero sonhar com pinturas que nunca encontrarão as telas, então desenho, desenho muito, sem me importar que fiquem feios ou não. Não quero escrever eternamente um livro que nunca será lido, então me forço a sentar e escrever, ainda que esse processo inclua encarar a página em branco — e, junto a ela, encarar também as minhas limitações. Não quero uma bagagem de planos não executados, então pego caderninhos, baixo aplicativos de planejamento, coloco o despertador, me organizo para fazer mais do que pensar. Digo a mim mesma, como se fosse um mantra cafona do qual não posso abrir mão: eu me recuso a ser um cemitério de ideias desperdiçadas. Eu me recuso a ser um cemitério de desejos desperdiçados.
No fim das contas, a certa altura da vida, me parece que a questão é: que pesos a gente está disposto a carregar. Alguns são insustentáveis. E de repente a gente descobre que é possível se recusar. Bater um papo com os fantasmas, aceitar o que vieram dizer, partir para a próxima. Peço desculpas a tudo que deixei apodrecer sem uso e me comprometo com a assustadora possibilidade de executar o que planejo, sabendo que ideias vivas são muito mais imprevisíveis do que as que deixei morrer. Mas também são muito mais capazes de mover os dias.
Li, assisti, encontrei
✷ Falando em planejamentos e organizações, gostei bastante dessa edição da , que, aliás, é uma newsletter que eu curto muito acompanhar quando me sinto perdida e procrastinadora. A também traz umas dicas ótimas para combater as autossabotagens.
✷ Encontrei esse texto por acaso numa madrugada insone e me identifiquei profundamente. Sobre homens mais velhos, violências sutis e tristezas difíceis de manejar. (Texto em inglês.)
“Eu não fui manipulada por nenhum dos homens mais velhos com quem saí; nenhum deles avançou além do ponto em que eu disse 'não'. Eu escolhi, de forma consciente e frequentemente entusiasmada, entrar nesses relacionamentos e permanecer neles. Às vezes, na parte pequena e secreta de mim onde guardo meus piores impulsos, eu desejava que eles tivessem ido um pouco mais longe, me prejudicado de forma um pouco mais clara, porque talvez assim eu não me sentisse tão louca por sofrer tanto. Sem leis quebradas ou limites ultrapassados, a dor das mulheres é loucura. (…) Há uma injustiça palpável e cósmica no fato de que um relacionamento, especialmente um com diferença de idade, pode mudar a psique de uma mulher enquanto mal inspira o homem a mudar seu estilo de comunicação.” (Tradução minha.)
✷ Garotas tristes e famintas. Ter sido adolescente nos anos 2000 é bem isso.
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Nossa, parece algo q eu teria escrito com 34 anos! Me vi muito no teu texto, ainda vejo muito do meu eu atual nele (tenho 44) mas uma chave mudou na minha cabeça lá pelo final dos 30 e eu me joguei mais nas coisas q queria fazer, projetos q estavam parados pq eu achava q precisava de mais preparo, mais estudo, etc.
não q agora eu não procrastine mais, pelo contrário, mas eu abandonei a ideia do perfeccionismo e simplesmente faço o q estou afim sem pensar muito no resultado. Quando a gente se envolve muito no processo os medos e inseguranças dão uma trégua, me parece. Boa sorte com teus projetos! Pensa q num cemitério pode nascer um jardim :)
essa edição está um viveiro de ideias aproveitadas! minha favorita até agora 🥰