#55 – Nove resmungos sobre términos
Leituras de tarô com o ChatGPT, estranhamentos e ausências. Esquecer não vem fácil.
Achei que choraria na hora, mas só chorei três horas depois. Estava assistindo televisão. Continuei assistindo televisão. Então, depois de três horas, enviei uma mensagem a uma amiga: morreu o meu namoro. Daí, chorei. E dormi. E sonhei que patinava em meio a vários patos barulhentos. Alguém chamava o meu nome. Eu não conseguia localizar quem era, mas não ligava. Meus patins eram verdes e brilhavam, eu não queria mais nada.
Sou uma recém-solteira encharcada de obviedades. No dia seguinte, marco um corte de cabelo. Quero furar a orelha. Fazer uma nova tatuagem. Em momentos de ruptura, é o meu modus operandi favorito: transformar o corpo para que ele se torne outro — assim, a dor vai pertencer ao corpo antigo, ficar para trás. Minha nova versão não sabe nada a respeito desses choros, ela está reinaugurada para a nova temporada. Fiz isso quando meu pai morreu. (Ainda assim, o luto. Não fui poupada.)
Pouco antes de morrer, meu pai parou de fumar. Lembro dele dizendo que o pior não era a falta do cigarro em si, mas a ruptura do hábito. O que fazer com as mãos em certas ocasiões? Como terminar um café e não querer emendar em um cigarro? Leva 21 dias — me disse uma terapeuta anos atrás — para que o cérebro assimile a mudança de um hábito. 21 dias para não pensar em mandar mensagens de bom dia. 21 dias para esquecer o uso da palavra amor como vocativo.
“Amiga, o seu erro foi ser não monogâmica e manter uma relação só. Se tivesse muitas, estaria se distraindo com as outras. O sofrimento ameniza.” — diz um amigo no WhatsApp. Entro no Bumble. Dou match com um cara que faz leituras de tarô com a ajuda do ChatGPT.
Decido fazer uma leitura de tarô com a ajuda do ChatGPT. Tiro o Oito de ouros. Ele diz: “Assim como um artesão que aperfeiçoa sua arte, você está sendo chamada a se reconstruir com cuidado e amor.” Penso que é bonito. No fim das contas, o que é a vida senão essa constante sequência de destruição-e-reconstrução-e-destruição-e-reconstruição-ad-aeternum? Minha nova versão em construção é uma doutoranda, que se cuida, pratica exercícios regularmente, prestes a se matricular em um curso de programação, fazendo artes, gravando vídeos, escrevendo livros. Sou uma artesã e estou construindo essa mulher que desejo ser, passo a passo. Preciso me dedicar a ela. Não há nada que exija mais a minha atenção do que isso agora.
O fim não vem bruscamente, ele acontece antes de acontecer. Às vezes, estamos distraídos para reparar; às vezes, não. Há quanto tempo antecipo o fim? Há quanto tempo o intuo, como quem pisa em uma superfície morna pressentindo o incêndio que se achega logo ali? Mesmo assim, mesmo quando desejamos a ruptura e a convidamos para a conversa, é um choque. Uma quebra no meio dos dias, um chão que se abre diante dos pés. Penso no filme que queríamos ver, na viagem que pensávamos em fazer, penso nos planos que ficaram todos eles em suspenso, como um gesto interrompido no meio. E agora rondam feito espectros, lembranças do que poderia-ter-sido-e-não-foi.
Em um mundo não monogâmico, talvez fosse mais fácil. Os vínculos com amigos seriam mais presentes. As mensagens de bom dia, boa noite, como foi o dia, seriam para eles. Ocuparíamos os finais de semana juntos, saindo para diferentes cantos da cidade. Compartilharíamos o cotidiano, em uma relação que se aproxima mais daquilo que hoje em dia é chamado de amor romântico. Nada de longos meses sem se ver, saídas esporádicas, mensagens de tempos em tempos. Em um mundo não monogâmico, a amizade seria a peça central, nosso grande eixo — não a família casal-filho-cachorro. Então, em um término, sentiríamos a dor, a saudade, o luto, mas a solidão não.
Um amigo me disse uma vez que um término era também o fim de uma linguagem compartilhada. Não só: o fim de um universo compartilhado. Coisas que só faziam sentido um com o outro. Expressões, lugares, cheiros, comidas, músicas que de repente parecem irreconhecíveis — porque já não podemos nos aproximar deles como antes. Já não os reconhecemos. Expressões, lugares, cheiros, comidas, músicas que de repente se tornam inevitavelmente distantes, impossíveis de conciliar com a pessoa que passamos a ser depois do fim.
Dia 5: me manter ocupada é a grande chave para não sentir a falta. Estudo, vejo aulas, leio livros, escrevo, desenho, gravo vídeos, saio, marco consultas, mando mensagens. Ainda assim, em algum momento, me pego quieta em silêncio. Não adianta, a falta se impõe. Não (só) a falta de alguém específico, mas a falta pura e simples, que vez ou outra a gente usa os outros para preencher. Lembro de um trecho do Caio Fernando Abreu, em que ele diz: “Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora faço o quê?” Depois de tudo, sobra a falta. E a necessidade de olhar para ela sabendo que não há para onde correr.
Li, assisti, encontrei
nascer é experimentar a falta pela primeira vez. por isso já se nasce chorando. experimentar a claridade frio vozes desconhecido cortar cordão umbilical experimentar sair do corpo-casa pela primeira vez deve ser de uma dor tamanha um trauma uma barbárie que a vida nos poupa de lembrar. (…) viver é ir indo de falta em falta.
✷ O que a palavra revela sobre nós?
✷ Começou a pré-venda do Estado febril, livro novo da Thaís Campolina que vai sair pela Macabéa. Já comprei o meu (aproveitei para pegar um combo com o Breve ato de descascar laranjas, da Bianca Monteiro Garcia, finalista do Jabuti).
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aaaaaaaaaaa passando por isso também, a dor não diminui, nós é que crescemos ao redor dela !
Acho que o que mais me doeu no último término foi o fim dessa linguagem (e mundo) compartilhado que de repente não existe mais. Fiquei uns bons 6 meses sem conseguir fazer o café da manhã que fazíamos juntas porque me dava vontade de chorar haha. Hoje nem lembro, ele é meu de volta. :)