Semanas estranhas. Com direito a primeiras e últimas vezes, conversas incômodas, maratona de Fleabag, Ani DiFranco no repeat, algumas crises de choro, percepções difíceis. Tenho a sensação de que alguma coisa estava depositada lá no fundo de mim, em repouso, como um pó que não foi devidamente diluído. Mas, conforme o copo foi mexido, ele de repente veio à tona — surpreendente e desagradável. O desconforto foi tamanho que me peguei num cosplay de Cristina Yang gritando “somebody sedate me”, porque ficar acordada dentro da minha cabeça parecia demais pra mim.
Como ninguém me sedou, sedei-me eu mesma — e daí tive que ir pra emergência depois de me exceder nas doses de remédio para dormir. Acabei rindo quando a enfermeira perguntou com ar de seriedade “a senhora atentou contra a sua vida, senhora?” e me senti um pouco Susanna Kaysen respondendo: “não, eu só queria ficar desacordada”. E era verdade, o que eu queria era uma daquelas cenas de Chapolin Colorado, em que o personagem dá uma marretada na cabeça do outro e ele cai feito uma fruta podre. Eu não atentei contra a minha vida, senhora, eu queria ser nocauteada, qualquer coisa que desligasse esse barulho incessante que é a minha cabeça 24 horas por dia.
No Tinder, uma moça com quem eu dei match contou que tem uma árvore de cajá no quintal da casa dela. Respondi que nunca comi cajá, ela disse que vai levar um para mim quando a gente se encontrar. Gostei da ideia de um primeiro date com cajás. Uma mulher que amei me deu de presente um brinco logo no primeiro encontro.
Para o date que estava marcado nesse ultimo sábado, eu tinha feito um desenho de presente para ela. Fiquei com medo de parecer emocionada demais (os jovens têm isso agora), mas, ainda assim, decidi fazer. Gosto desses pequenos gestos, desses pequenos afetos. Até hoje, guardo o brinco que a Ana me deu. Talvez ela não se lembre, mas eu guardo. Assim como um tsuru que uma menina desconhecida fez pra mim num bar em Botafogo mais de 10 anos atrás. O date de sábado foi cancelado, então o desenho não foi entregue, mas é possível que eu guarde também.
Um inventário de pseudo-quase-possíveis-amores. Um inventario de momentos em que eu enxerguei você e você me enxergou — e, por mais bonito que tenha sido, ninguém soube o que fazer com isso.
Nos momentos em que as conexões desmoronam, gosto de lembrar da Ana que, além de chegar ao nosso primeiro encontro com um par de brincos, também chegou com uma coragem avassaladora. Tão pronta para entrega que, antes mesmo de me ver pessoalmente, anunciou com todas as letras que queria arriscar esse mergulho comigo. Me senti hipnotizada não apenas pela sua capacidade de se desnudar tão cedo, mas pela forma como ela fazia justiça ao próprio desejo. Sem margem para desperdício. Podia funcionar, podia não funcionar. Mas ela estava ali, inteira, entregue, bancando a coragem de dizer “eu quero”. Acho que em nenhum outro momento da minha vida vi algo tão atraente quanto ela sustentando essa coragem diante de mim, que ainda era uma desconhecida, que poderia manusear o seu desejo das piores formas possíveis. Vertiginosamente corajosa. Aberta. Disposta. Existe algo de muito bonito na entrega.
Acabei pegando dela essa forma de encarar as coisas. Respeitar de tal forma o próprio desejo que não há outro caminho a não ser permitir que ele aconteça. Apesar dos pesares. Honrar o próprio desejo, reconhecê-lo, ser justa com ele. Se não der certo, a gente arruma a bagunça depois. Sempre vai ter algo para arrumar, sempre alguns copos quebrados, alguns hematomas que demoram a sumir.
Digo isso como uma grande medrosa. Escrevo sobre o medo desde sempre. Escrevi sobre como ele comeu parte da minha vida, escrevi sobre como ele influenciou o meu amor pelas narrativas de horror. Escrevo obsessivamente sobre o medo como uma forma de tentar tirá-lo da minha carne, de impedir que ele atravesse cada respiração, que guie cada um dos meus gestos. Tudo que se move em mim se move apesar do medo. Meus passos raramente são firmes, pelo contrário, acontecem aos trancos e barrancos. Minha voz é trêmula. Vou sempre querendo voltar. Insisto pensando constantemente em desistir. E, apesar de tudo, apesar dessa areia movediça que me engole todos os dias, tem sido bonito segurar o desejo com as duas mãos, reconhecer a sua existência, manter com ele o meu pacto inegociável. Permito que ele exista, que respire, que seja ouvido. Dou a ele a chance de, sozinho, traçar um caminho — sem as tutelas exigidas pelo medo. Às vezes, é ótimo. Às vezes, é terrível. Mas, sem isso, não sei bem se sobra algo que valha a pena fazer.
Li, assisti, encontrei
✷ Animada pra mostra queer que vai rolar no Estação em breve. Muitos filmes bons.
✷ Quatro falas curtas sobre o desejo. Gosto muito do que a Taís escreve.
✷ Terminei Fleabag e, como diz o ditado, não sei nem o que dizer, só sentir. É possível que em breve ela apareça em alguns textos por aqui, porque a identificação foi forte, mas, por ora, fica aí a indicação pra quem, como eu, raramente vê as coisas enquanto elas estão no hype e acaba assistindo séculos depois.
Maíra, o começo do seu texto tem tudo a ver com o livro que tô lendo e super indico: "Meu ano de descanso e relaxamento" da Ottessa Moshfegh. acho que você vai gostar. <3
Seu texto me tocou tanto! Um desejo escondido na garganta, no corpo, sedento por existir de algum modo aqui fora, encontrou eco nas suas palavras. Muito obrigada