#54 – Nenhum problema (resolvido)
Drummond para perdidos & alguns livros para ler antes do ano acabar.
Um dos meus trechos literários favoritos na vida é um verso do Drummond em que ele diz:
“Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.”(Carlos Drummond de Andrade, no poema “A flor e a náusea”)
Gosto de como ele ilude a gente com o primeiro verso. Nenhum problema, que delícia. Aí vem a quebra, a queda, a mudança brusca: resolvido. Sequer colocado. (Se não é um dos enjambements mais bonitos da literatura, eu não sei o que é.)
Conforme vai aumentando a minha idade, lembro com mais frequência desse poema. A quebra do verso me parece mais e mais pontiaguda. Tenho só 34, ainda faltam 6 para os 40. Mas começo, enfim, a entender um pouco melhor o peso do verso. Lembro que conheci esse poema aos 22, em uma aula na faculdade de Letras. O professor, com seus 45, apontava com paixão a força do corte drummondiano. Eu não alcançava tão bem. Tinha só 22. Muitos problemas — mas também muita expectativa de resolvê-los em um futuro bem breve, sem mistério. Na minha cabeça de vinte e poucos, certamente tudo estaria solucionado antes dos 30. Impossível que não estivesse.
(Não está.)
Digo a mim mesma que ter 30 anos hoje em dia não é a mesma coisa que ter 30 anos décadas atrás. Os trintões de antes já tinham família montada, carreira definida e seguro de vida aos 32. Agora, muitas das pessoas de trinta-e-alguma-coisa que conheço estão repensando profissões, vagando por aplicativos de namoro, dividindo apartamentos por dificuldade de pagar um aluguel, sequer cogitando filhos. Talvez a minha bolha seja uma bolha de pessoas meio perdidas, sendo muitas delas artistas e nada financeiramente estáveis? É possível. (“O tempo pobre, o poeta pobre/ Fundem-se no mesmo impasse”, Drummond também) Esses dias, um amigo me mandou um meme que dizia como assim tem gente indo pro segundo filho e eu parcelando um protetor solar? Pois é. Mas o ponto é que nós, pessoas 30+ com nada resolvido, existimos.
Aos 34, tenho pensado em fazer uma nova especialização. Com um diploma de Letras, mestrado em Teoria literária e pós em Marketing, de repente me pergunto como seria fazer uma formação em Psicanálise. Por aqui, o cenário tem sido esse: mais de 10 anos trabalhando como revisora (sendo constantemente mal remunerada); escrevendo, desenhando e criando coisas de graça pois nunca consegui de fato receber por isso; uma breve passagem pelas áreas de social media, criação de conteúdo, branding, atuando também como editora e redatora; livreira por 1 ano; exausta. No meio do caminho, fiz um curso de tradução (embora nunca tenha chegado a exercer) e um de design gráfico (que ainda não terminei). O que fazer dessa salada? Como transformá-la, enfim, em uma refeição capaz de saciar a fome?
O lançou um exercício esses dias que me parece ter repercutido no Notes. A ideia era pensar no seu eu de 10 anos atrás, o que aconteceria se ele acordasse no corpo do seu eu de agora. Ele reconheceria onde você está? O que ele acharia? Vi muitas pessoas felizes com o exercício. Eu fiquei tristíssima. Minha eu de 10 anos atrás acharia minha vida atual uma piada. Perguntaria o que diabos eu fiquei fazendo nos últimos 10 anos, por que ainda está tudo uma bagunça, quando eu vou resolver isso e aquilo, como pode eu ainda não ter as respostas para todas essas perguntas. Minha eu de 10 anos atrás, se pudesse, meteria um tapão na cara da minha eu atual. E, honestamente, a minha eu atual aceitaria.
Afinal, 34 anos e nenhum problema — resolvido. Ou sei lá, pouquíssimos problemas resolvidos, outros tantos recém-nascidos, muitos alimentados pela minha própria cabeça, como gremlins que, contra minha vontade, eu crio e depois reclamo do quanto gritam e bagunçam meu juízo. Outro dia brinquei que vou abrir um grupo de apoio chamado Associação das Pessoas 30+ Não Realizadas Profissionalmente. Lá, vamos rir com lágrimas nos olhos sobre não conseguir pagar um aluguel sozinhos nem no menor cativeiro de uma cidade grande, vamos cogitar (também com lágrimas nos olhos) a possibilidade de ter que voltar para uma nova faculdade a essa altura do campeonato e vamos lamentar (com lágrimas explodindo os olhos) a sensação de termos feito algo de errado, de termos perdido alguma entrada no trajeto dos 20 até aqui, porque não é possível, não era para ser assim, era?
Sei lá. Gosto muito das histórias de pessoas que encontraram realização profissional “tarde”. Gente que passou 2 ou 3 décadas inteiras vagando entre trabalhos que não faziam nenhum sentido, até finalmente esbarrar com aquilo que guiaria o resto das suas vidas. Sei de cor, por exemplo, a idade em que o Alan Rickman deixou de ser designer gráfico e passou a ser ator (42). Ou que a Julia Child só se matriculou em uma escola de culinária aos 37.
Gosto dessas histórias porque elas me lembram que muitos problemas podem se resolver só bem mais tarde na vida. Assim como podem se des-resolver depois. O que parecia estar resolvido de repente se revela um novíssimo problema, com cheirinho de saído do forno. Da mesma forma, aquilo que acreditávamos ser um problema em um determinado momento pode deixar de incomodar. Resolver, quando se trata da vida, é uma ação um tanto subjetiva. Nada definitiva e sem hora marcada para acontecer.
Breves novidades
✷ E não é que, de repente, eu comecei a postar vídeos no YouTube? Passei uns bons 5 anos falando que começaria, fazendo planos, pensando possibilidades, mas acabou que o que deu certo mesmo foi começar de supetão. A ideia é postar vlogs, pequenos estilhaços da vida, alguns papos mais aprofundados (que talvez não caibam na aceleração das redes sociais), etc.
✷ Agora incorporei outras 2 novas páginas à newsletter: uma sobre mim; outra que reúne links pra todas as coisas que eu já publiquei por aí (ainda estou incluindo os links nessa segunda, mas já coloquei tudo que lembrei de primeira).
✷ Novembros esquisitos. Uma playlist pra esse mês estranho de fôlegos & cansaços.
Leituras para o fim do ano
Já estamos caminhando para o meio de novembro, e eu estou lendo 5 livros ao mesmo tempo (por que, Deus?). Mas não satisfeita com isso, eu ainda resolvi fazer uma lista de livros que gostaria de ler antes do ano terminar. Obviamente, não vou conseguir dar conta de tudo, mas se conseguir finalizar um desses já vou ficar bem feliz.
O dia escuro (Várias autoras)
“Uma mulher acha um dedo na praia. Um homem em situação de rua agoniza na calçada. Uma menina tem certeza de que sua mãe foi trocada por outra. Uma criança brinca com a amiga sem saber que já morreu. Essas são algumas das inquietantes histórias contidas nesta coletânea organizada por Fabiane Secches e Socorro Acioli para levar o debate sobre terror latino-americano a um novo patamar. O dia escuro reúne textos que causam medo, angústia, repulsa ou assombro, e têm como único ponto comum o fato de terem sido escritos por mulheres.”
Meu ano de descanso e relaxamento (Ottessa Moshfegh)
“Estamos no ano 2000, em Nova York, uma cidade cheia de possibilidades. E a narradora de Meu ano de descanso e relaxamento não tem motivo para queixas. Ela é jovem, bonita, trabalha numa galeria descolada, mora num belo apartamento e recebeu uma herança polpuda. Mas traz um enorme vazio no peito. E não apenas porque perdeu os pais ou por causa da relação destrutiva que desenvolveu com sua melhor amiga. O que pode estar tão errado? Moshfegh nos convence de que a alienação, em tempos confusos como os nossos, pode ser razoável e até mesmo necessária. Delicado e carregado de humor ácido, impiedoso e compreensivo, Meu ano de descanso e relaxamento revela por inteiro uma escritora inventiva e extremamente talentosa.”
Os perigos de fumar na cama (Mariana Enriquez)
“Uma menina descobre ossos no quintal, e não são de um animal. Uma cena bucólica de verão, garotas se banhando no lago de uma pedreira, transforma-se num inferno motivado por ciúme e inveja. Um homem marginalizado semeia desgraças em um bairro rico após ser maltratado. Barcelona se transforma em um cenário perturbador, marcado pela culpa e do qual é impossível escapar. Em Os perigos de fumar na cama, Mariana Enriquez reúne doze histórias fantásticas, lançando mão de um amplo repertório de recursos narrativos inspirados nos clássicos do terror: fantasmas, bruxas, brincadeiras com espíritos, visões e mortos que voltam à vida. Mas, muito além de apenas revisitá-los, ela renova o gênero pelo qual ficou conhecida, demonstrando mais uma vez a força de sua voz radicalmente contemporânea. Suas histórias mergulham no sinistro que espreita o cotidiano, exibem um erotismo obscuro e tecem imagens poderosas cuja marca é inegável.”
Cinzas na boca (Brenda Navarro)
“Em Cinzas na boca, uma jovem mexicana parte para a Espanha com o irmão para reencontrar a mãe, ausente desde a infância dos dois. Porém, no novo país, a perspectiva de reconexão familiar vai ruindo diante de uma sociedade que é cruel com imigrantes. Resta viver à margem, cuidando de idosos ou limpando banheiros, enquanto se questiona sobre o quê, afinal, dá sentido aos seus dias. Esse conflito se intensifica após o suicídio do irmão, quando ela tem que carregar as cinzas dele de volta para o México ― e aí somos tragados pela prosa brutal e inebriante de Brenda Navarro.”
As primas (Aurora Venturini)
“Em As primas, definido por Alan Pauls como “a meio caminho entre a autobiografia delirante e a etnografia íntima”, Aurora Venturini recria o território de sua infância na La Plata dos anos 1940 e, numa mescla desconcertante entre o trágico e o cômico, constrói o retrato de mulheres abandonadas que, para além da pobreza, são obrigadas a lidar com deficiências físicas, mentais e imaginárias. Enquanto frequenta “institutos para limitados”, em casa, a jovem Yuna cresce mergulhada no cotidiano precário de sua mãe “professorinha mixuruca e olhe lá”, no de suas primas Petra e Carina, também portadoras de deficiências, e de seus tios e tias, todos às voltas com os cuidados da irmã Betina, infantilizada para sempre em uma cadeira de rodas. Quando conhece o professor José Camaleón, entusiasta do seu talento para a pintura, Yuna vislumbra a possibilidade de escapar do que o destino parece ter lhe reservado.”
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Gosto muito de "cinzas na boca" ! E sobre se achar... Bem, eu deixei essa fome de lado e sigo fazendo o que posso/desejo/consigo, sem a expectativa de 'virar algo' porque isso só me fazia sofrer. Tou aqui na segunda faculdade, não tá fácil, mas veja... Cheguei ao final do segundo ano! Disse e digo de novo: acho que a psicanálise tem tudo a ver com seu percurso. Beijo.